SINOPSE — O “Frankenstein” de Del Toro e a dor que molda o homem 

Existe algo de profundamente comovente em assistir Guillermo del Toro finalmente encontrar seu destino cinematográfico. Afinal, não é segredo para ninguém que “Frankenstein” era seu sonho de décadas e, levando em consideração seu apuro estético, sua imaginação e sua capacidade de extrair beleza da monstruosidade, esse talvez seja o filme que ele nasceu para fazer.

Olhando retrospectivamente para sua carreira, torna-se óbvio esse era o caminho natural, algo que combina muito bem com tudo o que ele já colocou nas telonas. A estética gótica, o amor pelos marginalizados, a devoção aos monstros como metáfora da humanidade… Era apenas questão de tempo até que ele se aventurasse a tocar no mito original de Mary Shelley, aquele que alimentou sua imaginação desde menino. 

Agora, realizado com fôlego épico e ambição desmedida, o Frankenstein de Del Toro é verdadeiramente dele, inconfundivelmente dele. É justamente esse tom autoral escancarado que torna esta versão do clássico tão singular.

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Apesar da quantidade incontável de adaptações do romance de Shelley, poucos cineastas compreenderam com tanta precisão o cerne trágico da obra como fez Del Toro. O diretor não busca o horror direto, tampouco a reconstituição reverente. O que ele constrói é uma tragédia de abandono, uma reflexão sobre a responsabilidade e a vontade humana de ultrapassar limites que talvez não devêssemos sequer chegar perto. 

Começando a história pelo fim, o roteiro faz disso seu artifício de enquadramento, contando o que aconteceu até esse ponto em uma sucessão de longos flashbacks em dois capítulos distintos, um a partir da perspectiva do criador e outro sob o olhar da Criatura. São duas faces de um mesmo percurso, cada uma enriquecendo a outra até que finalmente se entrelacem.

O que segue, daí, é a história conhecida por todos, mesmo por quem nunca leu o livro, mas com a suntuosidade macabra da visão única de Del Toro. Ele entende como ninguém o romance de Mary Shelley e conta a história da solidão de quem ousa brincar de Deus, acrescentando a isto um raro gesto de perdão. Seu monstro não morre, vive porque o amor, mesmo que tardio, é uma forma de imortalidade. 

Do ponto de vista estético, “Frankenstein” é um triunfo técnico e visual. Ao evitar CGI e apostar em efeitos práticos, Del Toro devolve ao filme um peso físico raro no cinema contemporâneo. As próteses e maquiagens são de um detalhismo hipnotizante, e os cenários em escala real revelam uma direção de arte majestosa.

As lentes largas e distorcidas, já usadas em “A Forma da Água” e “O Beco do Pesadelo”, retornam com ainda mais força, criando um teatro de tragédias em profundidade. A trilha sonora estrondosa mistura coro sacro e cordas ásperas, compondo um ambiente elegíaco e ameaçador. A fotografia alterna entre o frio da ciência e o calor da emoção, reforçando a dualidade central: a criação e a destruição coexistem na mesma alma.

Mas o que torna a obra realmente poderosa é seu subtexto. Del Toro relembra que a história é uma tragédia sobre os limites de brincar de Deus. Referências a John Milton, a Prometeu e à iconografia cristã surgem com naturalidade, nos contraluzes, nas figuras cruciformes, no fogo como metáfora de criação e destruição.

Quando a criatura questiona por que foi feita, mas não amada, seu lamento soa bíblico. E a resposta tardia de Victor, quase um pedido de perdão, revela que a verdadeira monstruosidade nunca esteve na carne, mas na incapacidade humana de amar o que é imperfeito. “Frankenstein”, tal qual a natureza humana, é um filme de contradições que ora se anulam ora se complementam. A proposta de Del Toro é que olhemos para a contradição humana, para percebermos nossa capacidade de reagir com amor e violência em igual medida. 

No entanto, foi nas atuações irretocáveis de Oscar Isaac e Jacob Elordi que o diretor finalmente materializou seu sonho e conseguiu dar vida à “Frankenstein”. Jacob Elordi, aliás, é a alma do filme. Sua Criatura é um mosaico de ternura, ódio, confusão e pureza uma presença que prende o olhar não pelo tamanho ou pela maquiagem, mas pela capacidade de transmitir dor com uma nuance quase poética. Oscar Isaac, por sua vez, compõe um Victor Frankenstein trágico e detestável na medida exata, um homem consumido por sua própria ambição e incapaz de lidar com as consequências do que provocou. Juntos, os dois criam um embate emocional que sustenta a espinha dorsal da obra. 

Se tenho alguma reclamação, é sobre a forma como Del Toro subjuga e mal utiliza os coadjuvantes. Mia Goth, Christoph Waltz e Felix Kammere são subaproveitados e fazem o que podem dentro do seu limitado tempo de tela. Além disso, é um filme longo, e não apenas em minutagem, ele se estende emocionalmente, se abre em múltiplas camadas, abraça devaneios visuais, multiplica cenas que poderiam ser mais econômicas. Há um certo inchaço, sobretudo no primeiro ato, que demora uns bons 30 minutos para engrenar.

Mas sabemos que existe um certo exagero dramático inevitável nesse tipo de história. De qualquer forma, são problemas pontuais e que não tiram o mérito da ótima narrativa em torno das duas figuras centrais.

Mesmo nos trechos mais arrastados, é impossível negar a beleza do que estamos vendo. A força de “Frankenstein” está mesmo em sua essência trágica. A dor da Criatura, esse sofrimento eterno ecoa através de todo o filme. Ele existe porque seu criador não soube amar, porque a humanidade insiste em rejeitar aquilo que considera imperfeito.

Del Toro abraça essa dimensão filosófica com o fervor de quem está revisitando um mito fundador de sua própria sensibilidade artística. É uma obra de horror e de tragédia, de rancor e de compaixão, de beleza e de dor. Um filme sobre o ato de criar e o fardo de abandonar o que se cria.

“Frankenstein” é, sem sombra de dúvida, uma das obras mais pessoais da carreira de Del Toro. Um mosaico de tudo que o fascinou por anos: monstros ternos, humanos falhos, sombras carregadas de história, o eterno duelo entre criação e destruição. É um retorno às suas origens, uma síntese afetiva de sua trajetória e uma homenagem à literatura que moldou sua imaginação.

Como espectadora (e como crítica) permaneço encantada com sua coragem estética, emocionada e fascinada por sua ambição. Um filme belo, trágico, imperfeito, grandioso e absolutamente o reflexo de seu criador. Um conto gótico monumental que nos lembra que, no fim, os monstros somos nós.

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