SINOPSE – “Mickey 17”: A ousada e ambiciosa critica sociopolítica de Bong Joon Ho
SINOPSE é a coluna do Jornal Primeira Página assinada por Carolinne Macedo. Tudo sobre os principais lançamentos cinematográficos do mês e um mergulho na sétima arte!
Bong Joon Ho nunca foi um cineasta muito sutil em suas críticas ao capitalismo e à hipocrisia que o sustenta. Desde o lançamento de “Expresso do Amanhã” até o triunfo de “Parasita”, sua câmera sempre apontou para as injustiças estruturais do mundo moderno, escancarando a brutalidade com doses generosas de humor ácido e ironia. Com “Mickey 17”, seu novo filme, ele reafirma sua posição, agora em um cenário intergaláctico, onde o trabalho precarizado atinge níveis literalmente inumanos. A obra poderia soar piegas e caricata, se a comédia escrachada não fosse um dos grandes trunfos de “Mickey 17” desde o início. Nas mãos desse diretor é totalmente possível que uma crítica social contundente seja também absurdamente divertida.
A trama acompanha Mickey Barnes (Robert Pattinson), um azarado que, para fugir de suas dívidas, aceita um trabalho em uma missão espacial liderada pelo bilionário Kenneth Marshall (Mark Ruffalo). O problema é que ele se inscreveu, sem ler as letras miúdas do contrato, para ser um “descartável”, ou seja, alguém programado para morrer repetidamente em prol do avanço da colonização de um novo planeta. Sempre que Mickey morre – o que acontece com uma frequência nada salubre –, uma nova versão sua é impressa, com memórias e personalidade intactas. O conceito, fascinante e repleto de possibilidades, é uma metáfora transparente da exploração dos trabalhadores: no jogo do capitalismo, quem opera as engrenagens é sempre substituível.
E se há algo que a direção faz com maestria, é traduzir suas mensagens em imagens poderosas. A nave onde se passa grande parte da película é um reflexo visual da hierarquia social: enquanto os trabalhadores vivem em corredores claustrofóbicos, sujos e improvisados, os ricos desfrutam de espaços luxuosos, onde se preocupam mais com molhos exóticos do que com a sobrevivência da tripulação. O design de produção, impecável, reforça a divisão de classes sem precisar de uma única palavra de explicação. É fato que aqui o cineasta nos traz uma história relativamente mais simples e escrachada, sem grandes reviravoltas ou desdobramentos, mas que não seja dito que Bong Joon Ho não é firme em suas convicções, seja em qual gênero for.
Mark Ruffalo, numa atuação que abraça perigosa e acertadamente a caricatura, encarna Marshall, um líder messiânico que prega o progresso enquanto lucra com o sacrifício alheio. Sua interpretação oscila entre o cômico e o repulsivo, tornando-se um dos vilões mais fascinantes do cinema recente. Já Toni Collette, no papel de sua esposa, brilha ao trazer uma comicidade refinada, transformando o elitismo absurdo da personagem em algo simultaneamente engraçado e revoltante. Mas o filme pertence a Robert Pattinson. Seu Mickey é um protagonista cativante, oscilando entre a ingenuidade e o desespero, sem nunca perder o carisma. É impressionante como ele consegue diferenciar cada uma de suas versões, especialmente quando surge o Mickey 18 – uma variação mais fria e calculista de si mesmo. A sutileza nos gestos, na postura e até na voz, transforma o que poderia ser apenas um truque de roteiro em um espetáculo de atuação.
“Mickey 17” se destaca não apenas pela sua crítica social, mas também pela maneira que expande seu debate para além da exploração trabalhista. Nada que Bong Joon Ho faz é por acaso. Ao fim da sessão, fica claro que o filme não se contenta em ser apenas uma aventura sci-fi bem feita. A obra faz uma relevante comparação entre grandes corporações, movimentos políticos e igrejas, mostrando como todos podem facilmente se tornar instrumentos de controle e opressão. É uma provocação e, acima de tudo, um lembrete de que, mesmo no espaço, o capitalismo continua encontrando novas formas de moer corpos e descartar vidas. Bong Joon Ho pode ter levado sua história para outro planeta, mas a crítica continua sendo dolorosamente terrena.
Clique nos links abaixo e siga Carolinne Macedo e a coluna SINOPSE nas redes sociais:
@carolinnecmacedo
@sino.pse