“Nickel Boys”:  o horror invisível de uma América ferida

RaMell Ross retorna às telas com um projeto ambicioso, mergulhando fundo nas raízes de sua filmografia com “Nickel Boys”. O filme que marca a estreia do diretor em longa-metragens é uma adaptação cinematográfica do livro de mesmo título vencedor do prêmio Pulitizer. Ross que já demonstrou maestria ao abordar a experiência negra americana em seus documentários, entrega aqui um filme de impacto inegável. A adaptação do premiado romance de Colson Whitehead se traduz em um drama de denúncia social que, além de contar uma história poderosa, reflete sobre o próprio ato de narrar traumas históricos.  “Nickel Boys” é um exemplo do meio através do qual o cinema pode educar o público, sensibilizando-o através da jornada do protagonista através do injusto sistema racista.

A história nos leva à Tallahassee dos anos 60, onde Elwood Curtis (Ethan Herisse), um adolescente brilhante e idealista, é injustamente enviado ao Reformatório Nickel depois de pegar carona com a pessoa errada. Lá, ele conhece Turner (Brandon Wilson), um garoto de visão oposta: enquanto Elwood acredita que pode mudar o sistema com perseverança e justiça, Turner enxerga o mundo pelo prisma do cinismo e da sobrevivência. A dinâmica entre os dois, pautada por esperança e desilusão, é o coração do filme. E a relação deles cresce de forma autêntica, com diálogos bem construídos e um trabalho de atuação impressionante. A partir disso a direção cria um milagre visual e narrativo que enfatiza a riqueza do simples, e aborda uma temática social negra dolorosa com requinte e respeito.

Ross opta por uma abordagem ousada na direção: a câmera subjetiva nos coloca na pele dos personagens, quase como se estivéssemos vivendo aquela realidade ao lado deles. Esse recurso cria uma conexão intensa com os protagonistas e nos força a encarar o horror da instituição por meio de seus olhos. O olhar de Elwood, repleto de ingenuidade no início, vai se diluindo, uma vez que a câmera subjetiva é também empregada para contar o mundo pelos olhos de Turner. É onde a mágica acontece, porque ao trabalhar com uma dupla subjetividade, a narrativa pode fazer-nos viver o mundo por aqueles jovens, enquanto possibilita que estes dirijam-se diretamente a nós em certos momentos, pois a câmera desacopla-se do personagem e o enxerga pelas costas e de forma brilhante a narrativa te conduz até aquela emoção e sensibilidade específicas.

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A fotografia de “Nickel Boys” é um espetáculo à parte. As cores quentes e a iluminação natural ressaltam a dualidade entre a falsa sensação de normalidade e a brutalidade escondida sob a superfície do reformatório. Em cenas de maior tensão, a escuridão engole os personagens, refletindo visualmente sua impotência diante da estrutura opressiva. O desenho de som, contribui para a imersão, com silêncios angustiantes que dizem mais do que gritos de dor. Além disso, a montagem sabe quando alternar os pontos de vista com inserções de fotografias, de vídeos e de textos que ligam os diferentes tempos do filme e fortalecem ainda mais a robustez do texto. Existe tanto sentimento e tanta verdade que cada segundo parece precioso, parece caro, parece importar mais do que anterior e menos do que o seguinte.

O longa entrega é um retrato potente e necessário. Ross não cai na armadilha da exposição excessiva da violência, mas também não a minimiza – ele a insere na narrativa de forma inteligente, garantindo que a brutalidade nunca pareça gratuita. Ele poeticamente decide não perpetuar a violência racial de forma fílmica. A violência não é inviabilizada, o diretor apenas escolhe uma forma apropriada para que esta seja veiculada, transformando uma denúncia histórica em uma experiência cinematográfica sensorial e sensível. Tudo é explícito, no fim, embora nada precise sê-lo de um jeito óbvio. É um filme consolidado em cima da riqueza dos detalhes e no lirismo do ordinário.

“Nickel Boys” é, sem dúvida, um filme para se sentir, discutir e revisitar. É um cinema que educa, emociona e denuncia, e que nos convida a carregar consigo as vozes de Elwood, Turner e de antos outros cujas histórias precisam ser contadas. É uma produção complexa em sua “simplicidade” já citada. Complexo na forma e na mensagem. É um trabalho primoroso enquanto resultado cinematográfico e enquanto registro, tão realista quanto necessário numa história “quase real”, de beleza, de resistência, de hipocrisia, de insensibilidade e de dor. Uma obra tão inerente em essência que mesmo desafiando convenções e expectativas, transparece tamanha naturalidade, como se essa sempre tivesse sido a norma.

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