SINOPSE — “Uma batalha após a outra” e o caos como linguagem cinematográfica

Desde o primeiro frame, “Uma Batalha Após a Outra” não concede ao espectador o luxo de um “momento conforto”. Paul Thomas Anderson (“Sangue Negro”), mais uma vez desafiando qualquer convenção, entrega um filme que vibra em um ritmo nervoso e eletrizante.

O caos aqui não é um mero acidente, é método. É a própria argamassa que constrói essa obra grandiosa, onde o íntimo e o político se entrelaçam em um espetáculo de ação, sátira e melancolia. Anderson cria uma cadeia de eventos que explode em tela, apresentando temas sérios, como imigração, racismo, revolução e relações familiares, abusando do alívio cômico (talvez a melhor definição dessa palavra nos últimos anos).

Inspirado no romance Vineland, de Thomas Pynchon, o diretor ergue sua epopeia em núcleos que se cruzam e se contaminam. Bob Ferguson (Leonardo DiCaprio), ex-revolucionário soterrado pela mediocridade da vida civil, retorna ao campo de batalha quando sua filha Willa (Chase Infiniti, em estreia arrebatadora) é sequestrada por um velho inimigo e Sean Penn é quem dá corpo a esse coronel supremacista e caricatural.

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Teyana Taylor surge como Perfidia, ex-aliada cuja ausência posterior reverbera mais do que qualquer presença em tela. Perfomances que fazem a obra manter um equilíbrio admirável entre o excessivo e o íntimo.

O que poderia ser apenas mais uma narrativa de resgate ganha densidade porque Anderson não está interessado em binarismos fáceis. Não é apenas uma história linear de vingança ou resgate, aqui a jornada emocional se confunde com a luta política e o terreno do íntimo e o do público se encontram em uma bonita história sobre um pai e sua filha.

E que espetáculo! A fotografia de Michael Bauman aposta em planos largos que abraçam paisagens enevoadas e estradas poeirentas, contrastando com cortes bruscos que desorientam e traduzem o estado emocional dos personagens. O uso da VistaVision em 35 mm confere textura quase tátil, uma resistência à pasteurização digital que dialoga com a própria narrativa sobre resistência política.

A perseguição de carro, já celebrada como uma das mais inventivas dos últimos anos (e uma das mais esteticamente prazerosas que já vi), desconstrói a lógica hollywoodiana: não há adrenalina gratuita, há uma coreografia espacial que transforma a rodovia em montanha-russa de pó, fumaça e mormaço, cada grão de asfalto reverberando como se fosse som.

Não é uma perseguição tradicional, vale pontuar. Anderson recria algo que brinca com a estrada e sua geografia, e com os cortes entre os veículos. Em vez de pura ação cinética ou adrenalina, o diretor diverte-se com perspectivas.

Jonny Greenwood, parceiro inseparável do diretor, assina uma trilha sonora que mantém a narrativa sempre em movimento e cria uma atmosfera de tensão enlouquecedora. Ora urgente, ora melódica, ora quase debochada, sua música empurra viradas narrativas e colore o humor do filme. Um delírio sonoro que amplifica a instabilidade da obra, misturando orquestração clássica a texturas eletrônicas e repetindo temas como quem martela na mente do espectador o peso de uma memória que não desaparece.

A montagem ágil sustenta as quase três horas de duração, transformando o que poderia ser cansativo em uma experiência de fluxo constante. Anderson alterna o choque com o humor, a denúncia com a caricatura, sempre equilibrando espetáculo e discurso.

O design de produção, os figurinos e os cenários atemporais compõem um mosaico que tanto poderia estar no passado quanto no presente, reforçando a ideia de que as batalhas nunca cessam, apenas mudam de ambiente.

Os planos da direção aqui comunicam muito mais do que simples construções dialéticas de um universo. Eles são saltos diretos para o espectador, convites a se enxergar na tela e reconhecer a vida ordinária do mundo contemporâneo em situações e sequências específicas. E, como se não bastasse, há o rejuvenescimento digital de DiCaprio que é uma das aplicações mais convincentes que já vi.

A grande sacada de Paul está em reunir comentários, histórias e personagens e convertê-los em ironia devastadora: um filme imparável desde o primeiro ataque e que esquematiza. Politicamente, “Uma Batalha Após a Outra” não é panfleto, é sátira ácida.

O diretor reflete sobre o renascimento do autoritarismo, a normalização do fascismo e a fragilidade da democracia contemporânea sem precisar sublinhar nada. Supremacistas que não sobrevivem sem imigrantes, policiais infiltrados forjando atentados para justificar repressão, progressistas presos em rituais burocráticos que emperram mudanças. Tudo é criticado com igual precisão e ironia. É um comentário político que, embora ambientado nos EUA, ressoa globalmente.

O resultado é uma experiência desconcertante, que mistura o luto e o riso, espetáculo e critica social, a farsa e o drama, uma verdadeira montanha-russa emocional.

Ao final, “Uma Batalha Após a Outra” se revela não apenas uma narrativa sobre resgate, mas sobre memória, sobre heranças políticas e afetivas, sobre como cada batalha deixa marcas que nunca se apagam.

Anderson olha para a América contemporânea como quem olha para um espelho quebrado: cada pedaço reflete uma parte de nós, e juntos formam um retrato distorcido, doloroso, mas inescapável. É, sem exagero, uma das obras mais poderosas do ano.

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