SINOPSE — “Morra, Amor” a combustão silenciosa de uma mulher sob o peso da maternidade

“Morra, Amor”, novo trabalho de Lynne Ramsay, se organiza como uma experiência, um filme de atmosfera. Adaptado do romance “Die, My Love”, da argentina Ariana Harwicz, o longa não quer explicar a depressão pós-parto, nem enquadrá-la em diagnósticos confortáveis ou arcos de superação. O que Ramsay propõe é um mergulho sensorial, febril e profundamente corporal em uma mulher em colapso, um cinema que se apresenta em estado de choque, onde a dor não é sublimada, mas amplificada até se tornar quase insuportável.

Grace, vivida por uma Jennifer Lawrence em entrega absoluta, é uma mulher no puerpério que se muda com o marido, Jackson (Robert Pattinson), para uma casa isolada em uma zona rural da França. Uma propriedade herdada da família dele, marcada pelo suicídio de um tio. O cenário poderia facilmente sugerir um filme de terror, mas Ramsay rejeita qualquer elemento sobrenatural. O horror aqui é outro: é doméstico, cotidiano e íntimo. Está no silêncio prolongado, na repetição dos gestos, no corpo que já não parece pertencer a quem o habita.

Desde o plano inicial, “Morra, Amor” deixa claro seu projeto estético. Um enquadramento estático revela o interior da casa, com suas portas alinhadas, batentes sobrepostos e paredes de cores opacas, compondo uma geometria sufocante. A escolha do formato 4:3 (1.33:1) reforça a sensação de aprisionamento, fazendo com que Grace seja frequentemente observada através de frestas, molduras e limites físicos que parecem empurrá-la para dentro de si mesma. A casa, apesar de ampla, nunca é acolhedora, é um espaço que a rejeita.

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A diretora filma a protagonista como quem se recusa a abandoná-la. A câmera permanece colada ao seu corpo, acompanhando sua respiração, seus espasmos, sua transição progressiva entre o desejo e a exaustão. Não há distanciamento crítico, o tempo inteiro o espectador é convocado a sentir junto. Essa escolha radical transforma a mise-en-scène em um dispositivo de empatia incômoda, quase agressiva. Não se trata de compreender Grace racionalmente, mas de compartilhar seu mal-estar. É um filme corajoso, profundamente desconfortável e, por isso mesmo, indispensável.

O desenho de som é peça-chave nessa construção, nos aproximando ainda mais das experiências emocionais e psicológicas de Grace, criando no público a mesma sensação de ansiedade contínua e frustração que a protagonista experimenta. O som não somente ilustra, ele invade e a montagem fragmentada, rejeita progressões lineares. O filme avança em espirais, retornando a estados emocionais semelhantes, criando uma sensação de looping psíquico. Não há catarse, nem redenção. A obra entende que algumas experiências são irresolúveis.

A direção de arte evita o excesso de estilização, apostando em elementos naturais, luz difusa e espaços vazios para amplificar a sensação de claustrofobia emocional. Com um pulso magistral na realização e atenção aos detalhes, Ramsey capta, com a ajuda da direção de fotografia, a transformação psicológica e física de uma mulher, nunca julgando, nem ela nem o companheiro, criando camadas e camadas de interpretação e sugerindo uma exploração surreal, intensa e, por vezes, sombriamente hilária da depressão pós-parto.

Grace não odeia o filho. Esse é um ponto fundamental do filme e um dos seus gestos mais honestos. O bebê é, paradoxalmente, o único vínculo de ternura estável em sua rotina. A violência vem de fora, da pressão social sobre a maternidade ideal, da negligência emocional e sexual do marido, da solidão imposta pelo isolamento geográfico, da repetição interminável das tarefas domésticas.

Em uma cena aparentemente banal, ao comentar que “uma mãe de verdade teria assado o bolo” para comemorar os seis meses do filho, Grace revela não apenas uma autocrítica cruel, mas o peso das expectativas irreais que a esmagam silenciosamente.

Jennifer Lawrence constrói essa mulher com uma fisicalidade impressionante. Sua Grace é pulsante, inquieta, às vezes mais animal do que humana. Ela se arrasta, rosna, devora, implora e é mérito de Lawrence que, mesmo chocados diante de certas atitudes, compreendamos perfeitamente as raízes de seu comportamento. O momento em que Grace responde “Estou bem”, sorrindo mecanicamente, enquanto seus olhos denunciam um vazio absoluto, sintetiza o projeto do filme, revelando o abismo entre discurso e experiência.

Robert Pattinson, por sua vez, segue firme em sua trajetória de desconstrução do galã tradicional. Seu Jackson é um homem incapaz de acompanhar a complexidade emocional da esposa. Não é um vilão, mas também não é um parceiro. Sua impotência afetiva, somada à ausência física, transforma-o em mais uma fonte de frustração.

Curiosamente, é na relação de Grace com a sogra Pam (Sissy Spacek) que surge uma possibilidade de espelhamento, onde outra personagem, marcada por episódios de sonambulismo, parece carregar as cicatrizes de uma vida igualmente enclausurada, funcionando como um presságio do futuro. Já o personagem interpretado por Lakeith Stanfield surge como um desvio narrativo que carece de maior densidade dramática. Sua função na espiral emocional de Grace é limitada. Mas, ainda assim, trata-se de uma fissura mínima em um filme de força avassaladora.

Lynne Ramsay, que é perita em filmar espaços e personagens onde o trauma, angústia, pesadelos e sonhos convivem lado a lado, retornou então a temas já explorados em “Precisamos falar sobre o Kevin” e “Você nunca esteve realmente aqui”, indo além ao abraçar a animalidade como linguagem e ao rejeitar qualquer promessa de salvação.

“Morra, Amor” não é somente um “filme sobre depressão pós-parto”. É um filme sobre o que acontece quando o amor, o desejo e a identidade entram em curto-circuito. O potente longa marca o retorno de Ramsay após oito anos longe das telas, um retorno à altura de sua filmografia. Corajoso, desconfortável e profundamente imersivo, este é um filme que deixa marcas e não oferece respostas fáceis, nem consolo. Oferece carne, impulso e dor. Muita dor.

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