SINOPSE — Coração de Lutador: Entre o peso da glória e o vazio da derrota
Há filmes que, ao final da sessão, nos deixam com uma sensação inquieta, um vácuo emocional que demora a se dissipar. “Coração de Lutador – The Smashing Machine” é exatamente esse tipo de obra.
O mais recente trabalho de Benny Safdie, que encabeça seu primeiro projeto como diretor solo e aposta fichas em uma estética documental que não segue o padrão estrutural, se apresenta como uma cinebiografia sobre o lendário lutador de MMA Mark Kerr, mas acaba se tornando algo mais: uma parábola sobre o preço da vitória e o perigo de se confundir força com poder.
Safdie, conhecido por seu olhar quase documental sobre o caos urbano e humano em filmes como “Good Time” e “Joias Brutas”, aposta aqui em um retrato fragmentado, incômodo e sensorial da autodestruição.
A câmera nervosa, viva, por vezes intrusiva, se cola ao corpo do astro Dwayne Johnson para revelar as fissuras de um homem que aprendeu a bater, mas nunca a suportar as dores da queda.
O cineasta deseja aproximar o espectador da íntima e volátil vida de Kerr e o faz de maneira inescapável, mas, por vezes, escorrega em repetições e exageros.
A narrativa percorre os altos e baixos da carreira do lutador, com foco em seus anos no Pride, a organização japonesa que rivalizou com o UFC no início dos anos 2000. Mas Safdie evita o caminho fácil do melodrama esportivo.
Em vez de celebrar o triunfo, ele se detém nas rachaduras da lenda. As vitórias importam menos do que as derrotas, e os golpes mais dolorosos vêm de dentro. O roteiro, escrito pelo próprio diretor, comprime a ascensão meteórica e a decadência de Kerr em um mosaico de memórias partidas, onde o tempo parece se dobrar e se confundir.
Essa escolha, embora ambiciosa, é também a origem de certa arritmia narrativa. Há momentos em que o filme se arrasta, preso à indecisão sobre qual de seus muitos dramas quer realmente contar: o vício em opioides, a relação tóxica com a namorada, a crise de identidade ou a luta para reconquistar o próprio corpo.
A atenção dividida entre tantos obstáculos nunca se concentra o suficiente em nenhum deles para que uma empatia verdadeira se construa. No fim, o filme comete o maior pecado que uma cinebiografia pode cometer: não justifica para o espectador o motivo pelo qual ele deveria conhecer a vida de seu retratado.
Dwayne Johnson entrega, sem sombra de dúvidas, a melhor atuação de sua carreira. Longe da persona carismática e inabalável que o transformou em estrela de filmes ação, ele se despe da armadura e se permite ruir. Há em seu Mark Kerr uma vulnerabilidade inédita, um colosso de músculos que abriga uma alma cansada.
Seu olhar vacila entre a doçura e o desespero; sua voz, antes símbolo de autoridade, sussurra inseguranças e desejos reprimidos. É uma performance madura, consciente de cada nuance, que o coloca finalmente no radar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Johnson, entretanto, não está sozinho nessa empreitada. Emily Blunt, por sua vez, faz de Dawn Staples uma presença magnética. Ela é o caos e o refúgio de Kerr, um espelho que reflete suas fragilidades. Blunt que se faz sempre brilhante, aparece aqui em um registro mais cru e encarna com precisão a companheira geniosa e instável, dona de uma energia que oscila entre o amor e a ruína.
Juntos, Johnson e Blunt constroem uma química que sustenta o filme e culmina em uma das cenas mais intensas do ano, um confronto íntimo que mistura amor, raiva e rendição.
Tecnicamente, “Coração de Lutador” é um filme relevante. O cineasta molda seu novo longa sob um tom documental metamorfo e incômodo, potencializado por um estilo visual que abusa de movimentações de câmera bruscas, lentes específicas e até do uso de câmeras em VHS.
O efeito é a sensação constante de que o filme está se esforçando para ser uma obra de bastidores, tentando flagrar momentos crus e não encenados.
A fotografia que evoca o espírito visual dos anos 1990 e 2000 com tons dessaturados e texturas granulosas amplia esse caráter de falso documentário.
A trilha sonora acompanha essa estética com rara sensibilidade, o piano dissonante e as harmonias ruidosas traduzem a confusão mental do protagonista, enquanto melodias delicadas emergem nos raros instantes de serenidade. Há algo quase poético na maneira como o filme transforma o sucesso em vício.
A glória, aqui, é tratada como um entorpecente, quanto mais intensa, mais destrutiva. Kerr, viciado em vencer, se torna refém do próprio brilho, incapaz de aceitar a queda. E é nesse ponto que Safdie acerta em cheio, ao transformar a jornada do lutador em uma metáfora sobre a ilusão da força e o medo da vulnerabilidade.
“Coração de Lutador – The Smashing Machine” é um filme que desafia o espectador. É denso, irregular e, sim, por vezes cansativo. Mas também é sincero, corajoso e, em seus melhores momentos, devastador.
Safdie não faz um filme sobre lutas, faz um filme sobre a luta de existir. Sobre o que acontece quando o corpo já não sustenta o peso da própria glória. Talvez “Coração de Lutador” não seja o nocaute que promete, mas é, sem dúvida, um golpe de lucidez. Um lembrete de que até os gigantes caem e que, às vezes, é justamente no chão do ringue que se encontra a verdade.
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