OPINIÃO – Os médicos não são monstros
Por Claudius Vinicius – Doutorando em Educação, Jornalista, especialista em Jornalismo Político e Jornalismo Esportivo.
Parafraseando o autor escocês Robert Louis Stevenson, que em 1886 publicou a sua obra clássica “O Médico e o Monstro” na qual retrata o caso fictício do médico dr. Jekyll, criador de uma fórmula no intuito de separar os sentimentos bons dos ruins do corpo humano, ele não obteve êxito no seu projeto, pois quanto ingeria a fórmula transforma-se no mr. Hyde. A dualidade entre Jekyll e Hyde ilustra a luta interna entre a ética e a moralidade, representando a tensão entre a razão e os instintos primitivos. Jekyll busca o bem e a ciência, enquanto Hyde encarna os desejos incontroláveis e a corrupção.
O que nos serve a considerar relacionado à obra citada para a vida real hodierna, é sobre tudo, entender que os médicos buscam o melhor para os seus pacientes, para tanto, quando do término de sua formação acadêmica firmam o juramento de Hipócrates, um documento fundamental na ética médica, tradicionalmente recitado pelos médicos ao final das suas graduações.
O Juramento estabelece princípios de conduta, como a importância da confidencialidade, o respeito aos pacientes e a busca pelo bem-estar, embora não haja certeza sobre a autoria, acredita-se que tenha sido escrito no século V a.C. e continua a influenciar a prática médica até hoje, muitas escolas de medicina adaptam o juramento para refletir os valores contemporâneos, mas a essência de compromisso com a ética permanece.
Apesar dos desafios, a prática médica está profundamente ligada ao desejo de ajudar o próximo, de aliviar o sofrimento e de promover a saúde e o bem-estar, muitos médicos encontram motivação na conexão humana que têm com seus pacientes, na gratidão e nos momentos em que conseguem fazer a diferença na vida de alguém.
Contudo, esta profissão tem sido alvo no Brasil de ataques de forma ambígua, o aumento de processos contra médicos está relacionado a uma crescente cultura de judicialização, onde complicações ou até resultados indesejados, inevitáveis, são tratados como passíveis de compensações financeiras.
Com um mercado intensificado, há uma excessividade em promover essas ações em busca de indenizações substanciais, observa-se pelo aumento constante do número de processos que foi criado um mercado, explorando assim, essa situação para fins lucrativos das partes proponentes.
A generalização das tipificações é um problema no contexto da problemática em questão, configuradas nas faltas de individualização das condutas médicas em muitos desses processos, ocorrendo assim, tipificações genéricas ou acusações que não analisam o contexto específico de cada caso, podem resultar em inquéritos conclusivos imprecisos.
Crimes como negligência, imperícia ou imprudência precisam ser analisados com extrema cautela e com base em profundas perícias técnicas, pois a medicina lida com muitos fatores incertos, as características das particularidades orgânicas, que promovem situações em que cada paciente reage de forma diferente aos tratamentos consonantes.
A falta de individualização dos casos pode de fato levar a condenações injustas, a não compreensão sobre as complexidades dos procedimentos médicos, os riscos inerentes a ignorância de práticas clínicas por parte de leigos, são elementos que certamente conduzem a possíveis decisões judiciais indevidas, penalizando profissionais por eventos adversos que em muitas situações não poderiam ter sido evitados.
Criando-se assim, uma atmosfera de medo entre os profissionais, que podem se tornar excessivamente cautelosos em seus tratamentos, prejudicando a relação médico-paciente e a qualidade do cuidado prestado, como também, os melhores resultados desejados.
No Brasil, o dano moral está previsto no Código Civil, no seu art. 186 que diz: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Objetivando assim, responsabilizar o autor do dano, mas também, objetiva compensar aquele que sofreu a ação, na sua consternação psicológica ou emocional causado por atitudes ilícitas.
Contudo, muitas são as críticas de que existe em curso uma “indústria do dano moral”, argumento que ganha força fundamentado na relação de que há um número excessivo de demandas por compensações que, em muitos casos, não justificam as condenações e especialmente as indenizações exorbitantes requeridas.
A “indústria do dano moral” é um termo frequentemente utilizado de maneira crítica para se referir à alegada prática de exagerar ou banalizar pedidos de indenização por dano moral no sistema judiciário. Esse conceito sugere que pessoas com má fé estariam promovendo ações judiciais de forma excessiva ou oportunista, buscando reparações financeiras por situações que não há de fato culpa do acusado para tanto.
A reflexão sobre a trajetória de médicos, nos permite considerar as superações pessoais, muitos profissionais enfrentam jornadas árduas para chegar onde estão dedicando anos de estudos intensos, abrindo mão de momentos pessoais e enfrentando vultosos desafios financeiros.
Para aqueles que vêm de famílias de baixa renda ou até mesmo de classe média, a realidade de cursar medicina é ainda mais desafiadora com grandes sacrifícios de todo núcleo familiar para concluírem as suas graduações, exigindo por vezes, empréstimos e financiamentos adquirindo endividamentos futuros, a exemplo do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES).
Ao ingressarem no labor profissional as responsabilidades em lidar com a vida humana diariamente é imensurável, os médicos precisam equilibrar o peso emocional e psicológico de suas funções com a cobrança em fornecer tratamentos eficazes, muitas vezes em situações de extrema dificuldade e falta de recursos, há ainda um impacto emocional ao lidar com a dor, a morte e as frustrações que, inevitavelmente, surgem no dia a dia da profissão, mesmo com todo o preparo técnico, o lado humano de cada médico é constantemente desafiado.
A sociedade frequentemente coloca expectativas altíssimas nos médicos, como se fossem infalíveis, contudo, como qualquer ser humano, eles também estão sujeitos a equívocos e limitações, a pressão por perfeição, tanto interna quanto externa, pode ser imensa e levar ao esgotamento emocional e físico, e até mesmo o desenvolvimento da síndrome de Burnout, a síndrome do Esgotamento Profissional.
É essencial que a sociedade valorize não apenas a competência técnica dos médicos, mas também o esforço pessoal e humano que há por trás de cada um deles. Reconhecer que são pessoas com histórias de vida complexas e que muitas vezes enfrentam jornadas difíceis até mesmo para exercer a profissão é fundamental para que possamos criar um ambiente mais justo e compreensivo para esses profissionais.
É necessário compreender que médicos são seres humanos com diversas histórias de vidas, alguns com tratorias mais amenas, mas muitos com grandes desafios enfrentados diariamente, desse modo, se faz basilar criar condições dignas de trabalho, apoio emocional e psicológico para lidar com o estresse da profissão, e garantir que o processo judicial contra médicos seja justo e equilibrado são maneiras de retribuir o valor que esses profissionais trazem para a sociedade.
Indubitavelmente, é preciso respeitar os profissionais que lutam pela vida, não os tornando vítimas da “indústria do dano”,estabelecendo assim, um sistema que funcione com justiça, sem sobrecarregar desumanamente os profissionais de saúde ou permitir abusos do sistema jurídico.
Para melhor elucidar as discussões sobre a “indústria do dano moral”, particularmente com relação aos processos indenizatórios que os profissionais da medicina têm sido alvos, fizemos alguns questionamentos a Doutora Cecile Miranda Monreal Porto, advogada, especialista em Processo Civil e Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), uma profissional que tem trabalhado na defesa dos profissionais da saúde, particularmente em casos de ações abusivas, especialmente contra os médicos.
No ponto de vista de jurista como a senhora define “indústria do dano moral”?
“A expressão “indústria do dano moral” reflete a visão de que esse instrumento pode ser usado de forma exagerada ou leviana, promovendo com isso, impactos negativos, ou seja, essa prática sobrecarrega o sistema judiciário; desvirtuando o propósito do dano moral, desvalorizando casos realmente graves; levando a um aumento de indenizações exorbitante e descabidas pagas pelos profissionais, que muitas vezes precisam de acordos para enfrentar longos litígios.
A “indústria do dano moral” transforma o direito à reparação de danos imateriais em uma espécie de mercadoria, ocorrendo quando as pessoas passam a buscar indenizações por danos morais com o intuito de obter ganhos financeiros, sem que haja realmente uma violação significativa aos seus direitos de personalidade. Isso dá-se em situações em que o dano é mínimo ou sequer existe, mas o litigante, movido pela perspectiva de uma indenização, decide procurar a Justiça.
Essa mercantilização do dano moral compromete a integridade do sistema jurídico, que deveria ser um mecanismo de justiça, e não de exploração financeira. A prática também leva à banalização do instituto do dano moral, fazendo com que questões realmente graves sejam tratadas com menos seriedade, já que o valor das indenizações pode ser relativizado em meio a tantas ações que visam obter ganhos financeiros.
Podemos concluir que, a “indústria do dano moral” reflete uma utilização excessiva e, em alguns casos, distorcida do instituto do dano moral, que pode levar à banalização do sistema de justiça. Embora a reparação por danos morais seja um direito legítimo das vítimas de lesões a seus direitos de personalidade, é fundamental que o Judiciário adote critérios rigorosos para evitar que a prática se torne um instrumento de enriquecimento sem causa. Assim, a aplicação justa do dano moral deve ser pautada pela seriedade e análise criteriosa de cada caso, com o intuito de promover justiça sem cair na tentação de uma mercantilização indiscriminada”.
Em breves pesquisas, especialmente nas redes socias encontramos várias matérias tratando dos médicos como vítimas da “indústria do dano moral”, a senhora poderia apresentar alguns números que comprovem essa situação?
“Conforme dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano de 2023 o país anotou por volta de 25 mil ações motivadas por possíveis “erros médicos”, um aumento de 35% em relação aos dados de 2020, incluindo aí os danos morais e ou materiais da prestação de serviços de saúde.
Devo ressaltar que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) modificou a nomenclatura “erro médico” para “danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde” nas Tabelas Processuais Unificadas (TPU) do Poder Judiciário. A mudança foi realizada para refletir uma abordagem mais ampla e precisa sobre as questões envolvendo a responsabilidade em casos de falhas nos serviços de saúde.
Vale destacar que, os médicos se tornaram alvos de ações judiciais movidas não apenas por vítimas legítimas de erros médicos, mas também por aqueles que buscam compensações financeiras sem que haja uma real violação de seus direitos. A alegação de erro médico ou de falha na relação médico-paciente, mesmo que sem fundamento, pode ser explorada como uma forma de obter ganhos financeiros. Isso tem gerado um fenômeno preocupante para os profissionais da saúde, que, além de lidarem com a difícil tarefa de prestar cuidados de saúde, enfrentam o risco constante de serem processados.
Em muitos desses processos, o médico é responsabilizado com base na alegação de que houve danos morais, como sofrimento psicológico, angústia, perda da autoestima, e outros danos imateriais resultantes de uma suposta falha no tratamento. No entanto, nem sempre há evidências claras de que houve efetivamente uma violação dos direitos da personalidade do paciente ou de que a falha seja atribuível a um erro médico propriamente dito.
Destaca-se que, embora o direito ao reparo por dano moral seja legítimo em diversas situações, é fundamental que haja um equilíbrio para evitar que médicos sejam responsabilizados de maneira indevida, especialmente diante de falhas que são normais no campo da medicina. A “indústria do dano moral” não deve ser confundida com a proteção legítima dos direitos dos pacientes, e a responsabilidade dos médicos deve ser analisada com base na realidade e nas limitações próprias da prática médica, que envolve riscos e incertezas”.
Um caminho para mitigar esses problemas poderia ser o aperfeiçoamento da perícia médica no contexto judicial, com equipes especializadas e independentes que possam avaliar de forma justa e técnica cada caso?
“O aperfeiçoamento da perícia médica no contexto judicial, com a formação de equipes especializadas, independentes e bem capacitadas, é um caminho para mitigar os problemas relacionados à “indústria do dano moral”, especialmente no campo da medicina. Esse modelo não apenas oferece uma avaliação mais técnica e precisa, mas também contribui para a confiança na Justiça, protegendo os médicos de ações infundadas, ao mesmo tempo em que assegura que as vítimas reais de erro médico ou abuso sejam adequadamente compensadas. Esse equilíbrio é fundamental para garantir que o sistema jurídico cumpra seu papel de justiça, sem cair em distorções ou abusos”.
Países como os Estados Unidos, por exemplo, possuem leis de proteção para evitar que processos judiciais abusivos ou sem fundamento sejam levados adiante. No Brasil, também há discussões sobre regulamentar melhor o número de ações indenizatórias contra profissionais de saúde?
“No Brasil, existem discussões sobre a necessidade de regulamentar melhor as ações indenizatórias contra profissionais de saúde, principalmente em relação à prevenção de processos judiciais considerados abusivos ou sem fundamento.
Há uma proposta, por exemplo, de criação de uma Lei de Responsabilidade Médica, que estabeleceria parâmetros mais claros e específicos para a responsabilidade dos profissionais de saúde. Esse tipo de lei poderia detalhar quais situações configuram de fato crimes, o que pode ser considerado um risco previsível para o paciente e como os danos devem ser mensurados e indenizados.
Algumas iniciativas sugerem a criação de “filtros” para processos judiciais, nos quais os processos judiciais relacionados à área da saúde sejam filtrados através de uma avaliação inicial mais rigorosa, possivelmente por meio de uma instância administrativa, como uma comissão ética, que possa verificar a plausibilidade das alegações antes de permitir o andamento do processo.
Assim, embora ainda não haja uma regulamentação formal e eficaz que resolva completamente o problema da judicialização abusiva ou sem fundamento de ações contra médicos no Brasil, o tema está sendo amplamente discutido no meio jurídico e legislativo. Há esforços para criar normas mais claras e mecanismos de controle, como a implementação de tribunais especializados e a busca por alternativas como mediação e arbitragem.
O fortalecimento da perícia médica e a educação tanto de pacientes quanto de médicos também são aspectos essenciais nesse processo. A transição para uma solução equilibrada envolve a busca por justiça tanto para os pacientes, quando há erro médico ou danos reais, quanto para os médicos, que precisam de um ambiente jurídico que os proteja de abusos e litígios infundados”.
Gostaria de acrescentar mais algum comentário que por ventura, não tenhamos abordado?
“O cenário do dano moral, especialmente nos casos de erro médico é preocupante, pois resulta em uma sobrecarga no sistema judiciário e coloca em risco a imagem e a segurança jurídica dos profissionais da saúde. Isso ocorre não apenas em casos de erro médico real, mas também em situações em que o insucesso do tratamento ou as complicações previstas do procedimento são erroneamente interpretados como falhas graves, sem que haja respaldo técnico que as justifique.

No entanto, soluções como o fortalecimento da perícia médica, a educação dos envolvidos, a implementação de métodos alternativos de resolução de conflitos e a criação de regulamentações mais claras podem contribuir significativamente para mitigar o número de ações infundadas. O objetivo deve ser o equilíbrio, assegurando que os pacientes sejam devidamente compensados quando houver falhas reais, sem que isso gere um sistema de litígios injustificados que penalizem profissionais da saúde”.
Dra. Cecile Miranda Monreal Porto
Podemos apontar, diante das questões levantadas, focando na responsabilidade civil da profissão médica, que a partir de análises realizadas sob a perspectiva do contexto histórico, cultural e profissional, que há uma tendência tanto nos tribunais quanto na doutrina em apoiar as vítimas de práticas médicas que, possivelmente, não foram realizadas com a devida diligência e os cuidados previstos pela legislação. Isso possibilita que as pessoas prejudicadas obtenham reparações, seja por danos materiais ou morais.
Assim, a responsabilidade civil médica é um conceito que não pode ser limitada em uma busca por um objetivo financeiro, devendo sim alcançar o propósito social da assistência à saúde, que deve ser oferecida a todos com base nos princípios da beneficência, não maleficência, autonomia do paciente, dever de informação, acesso à justiça e dignidade do indivíduo.
Com isso, é importante destacar que julgar um profissional que se empenhou por anos de árduo esforço e aprendizado para desempenhar uma função voltada para o benefício da sociedade não é tarefa fácil, especialmente os jovens profissionais cheios de sonhos e desejos, que podem ter as suas careiras ceifadas ou manchadas durante as suas vidas de labor, acrescenta-se ainda nesses processos de angustia, todas as suas famílias que inevitavelmente são envolvidas nas caminhadas de formações.
Assim, as avaliações dos fatos realizada inicialmente nos inquéritos policiais, seguindo pelo ministério público, pelos tribunais e pelas instâncias decisórias dos Conselhos de Medicina, tanto regionais quanto federal, devem ser conduzidas com prudência e serenidade, a fim de evitar equívocos e prejuízos irreparáveis decorrentes de ações judiciais e processos administrativos inadequados.