O ano de 2024 não tem sido generoso com os musicais. O gênero, que já reinou absoluto como um dos pilares da sétima arte, hoje luta para se manter respirando em meio a produções que o tratam como um mero adorno. Números grandiosos de canto e dança vêm sendo reduzidos a meros artifícios narrativos, e a ousadia de abraçar a forma musical parece cada vez mais rara. Mas eis que surge “Emilia Pérez”, o novo filme de Jacques Audiard, com a proposta de trazer um sopro de novidade ao gênero. Mas será que inova mesmo? Pessoalmente, vejo o filme como uma experiência, no mínimo, desconcertante e a proposta de “Emilia Pérez” é estranha inclusive em seus momentos mais palatáveis. Há nesse filme uma certa incapacidade em se construir o mínimo de autenticidade.
A premissa é inusitada: Juan Del Monte (Karla Sofía Gascón), um chefe do narcotráfico mexicano, decide abandonar sua identidade criminosa e finalmente viver como Emilia Pérez. Para isso, ele conta com a ajuda de Rita (Zoe Saldaña), advogada frustrada que trabalha em uma firma que encobre crimes em vez de servir à justiça. O longa, embalado por um espírito de ópera pop latina, acompanha a transformação de Juan em Emilia, além de suas tentativas de redenção e de reconexão com a família que deixou para trás. O caminho, no entanto, é tortuoso, e Audiard não teme mergulhar em camadas de melodrama, comédia, crítica social e exagerada musicalidade para construir sua narrativa. Mas talvez o único acerto dessa sobra seja esse, ao contrário da tendência de domesticar o gênero musical para torná-lo mais palatável, “Emilia Pérez” abraça o exagero e a teatralidade.
Os números musicais não surgem como pausas na trama, mas como momentos de transcendência, onde as personagens se libertam de suas amarras narrativas e emocionais. São esses momentos de transgressão e rupturas do véu de realidade do filme que revelam a genialidade do diretor em estabelecer com tanta confiança um universo particular de metamorfoses radicais através da junção inusitada de tons e categorias. E faz isso de maneira surpreendentemente eficiente e natural, mesmo com os exageros que já viraram piada. A trilha sonora não se prende ao tradicional: há rap, baladas dramáticas e experimentações sonoras que fogem da previsibilidade. Isso pode soar estranho para alguns, mas há um método na loucura de Audiard: a linguagem musical se torna a forma mais crível de expressar as angústias, desejos e dilemas das personagens.
Se por um lado o filme brilha em sua inventividade estética, por outro, sua estrutura narrativa pode cansar. A trama se estende em diversos caminhos, e nem todos são igualmente envolventes. A jornada de Emilia como figura de redenção é poderosa, mas se perde em um tom quase messiânico, enquanto outras subtramas – como a relação de Rita com sua própria identidade e o drama da ex-esposa de Emilia (Selena Gomez) – nem sempre ganham a profundidade que merecem. No elenco, Karla Sofía Gascón se destaca com uma performance carregada de nuances, transmitindo tanto a brutalidade de Juan Del Monte quanto a sensibilidade de Emilia Pérez. Zoe Saldaña, indicada ao Oscar por sua atuação, entrega uma performance magnética, conseguindo ser o fio condutor entre os diversos temas do longa. Já Selena Gomez, apesar de atrair atenção para o filme, não tem material suficiente para brilhar, ficando em segundo plano.
Para além dessas controvérsias extra-filme, no entanto, o problema de Emília Pérez consta no próprio trabalho e pode ser sintetizado em apenas quatro palavras: a ausência de verdade. No fim das contas, “Emilia Pérez” se torna uma tentativa quase frustrada de chamar atenção através de sua estética e provocações sustentadas em temas impactantes. Sua proposta ousada pode afastar quem espera algo mais tradicional, e sua estrutura nem sempre é coesa. No entanto, o filme tem a coragem de ser um musical de verdade – não um pastiche diluído, mas uma obra que entende a força do gênero para contar histórias de transformação. Audiard retorna às suas origens profundamente interessado em desautomatizar a linguagem, no entanto, sua tentativa de estabelecer uma dialética entre a brutal realidade externa e a ornamentação recreativa e alegórica de seu México metafórico, são totalmente questionáveis.