SINOPSE — O Agente Secreto: Kleber Mendonça Filho e o cinema que habita a memória

Há diretores que fazem cinema, e há Kleber Mendonça Filho, que faz do cinema um espelho do Brasil profundo: trincado, belo e contraditório. Em “O Agente Secreto”, seu sexto longa, o diretor pernambucano reafirma seu domínio sobre o ofício e sua devoção por Recife, cidade que, mais do que cenário, se apresenta como uma personagem viva, moldada pela memória, pela história e por um sentimento coletivo de resistência.

Premiado duas vezes em Cannes e escolhido para representar o Brasil na disputa pelo Oscar 2026 de Melhor Filme Internacional, “O Agente Secreto” é um desses filmes raros que nos tomam de surpresa e que não se deixam domar por fórmulas.

Ambientado em 1977, o longa acompanha Marcelo (Wagner Moura), um professor de tecnologia que foge de um passado violento e tenta recomeçar em Recife após a morte da esposa. No entanto, o refúgio que ele procura se revela um labirinto de paranoia, vigilância e afetos interrompidos.

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Aqui Kleber recria a Recife da ditadura sem jamais nomeá-la. As ruas, o som distante dos rádios, os prédios antigos e os cartazes de cinema formam um retrato de um Brasil mergulhado no medo e na resistência silenciosa.  Com uma reconstituição de época inventiva e frequentes planos abertos, cada detalhe parece ter sido retirado de uma lembrança coletiva.

Wagner Moura conduz o protagonista com uma presença magnética. Seu Marcelo é um homem quebrado, movido por uma decência teimosa e um medo constante de ser vigiado. O ator transforma o olhar do personagem em um farol que ajuda o espectador a enxergar a beleza de coisas e pessoas que talvez ignorássemos.

Ao seu redor, um elenco de coadjuvantes luminosos (destaque absoluto para Tânia Maria como Dona Sebastiana, uma senhora que, entre cigarros e sabedoria popular, rouba a cena e o coração do espectador). Cada personagem que cruza o caminho de Marcelo carrega uma história que parece maior que o próprio filme, e essa multiplicidade é um dos maiores trunfos da direção de Kleber, onde ninguém é figurante nem na obra, nem na vida real.

Uma obra inquietante que provoca o espectador, e na qual um cineasta usa seus poderes, e os da sua equipe, para não só recriar um momento da sua cidade e da sua vida, mas também um estado de espírito. Espírito esse que acompanha o espectador mesmo após a sessão.

A fotografia de Evgenia Alexandrova, com suas lentes anamórficas Panavision, transforma a cidade de Recife em uma cápsula do tempo. É como se fossemos convidados a atravessar uma lembrança e não somente a assistir a um filme. Existe um trabalho minucioso de toda a mise-en-scene, principalmente da direção de arte com seus cenários, maquiagem e figurinos, da direção de fotografia e da trilha sonora.

O roteiro, escrito pelo próprio Kleber, é engenhoso em seu ritmo inconstante. As cenas se estendem, respiram, divagam, e essa liberdade é o que dá corpo ao filme. A obra não pede por pressa em sua decupagem, pelo contrário, faz questão de explorar todas as ruas e vielas de cada pedaço de chão de uma Recife cheia de histórias. Porque o que importa não é a solução do mistério, mas o desconforto que ele provoca.

Se passando na década de 70 mas com assuntos extremamente atuais, o longa debate temas relevantes sobre a memória daquele tempo, discussões de gênero e outros assuntos, deixando claro ao espectador como aquela história também tem realidade.

Revelando gradualmente uma estrutura que funciona em duas linhas cronológicas distintas, “O Agente Secreto” conta com uma montagem que brinca com o tempo costurando o passado e o presente com fluidez e ironia. Repleto de transições inteligentes e pontuado pelo senso de humor peculiar do cineasta, o filme equilibra o peso de seus temas através de piadas sutis e outras impossíveis de ignorar.

Amarrando a narrativa de modo emocionante ao refletir como um dos legados mais tristes daquela época foi a destruição de núcleos familiares e a interrupção de vidas, o filme nos nega um desenvolvimento e uma conclusão convencional, ressaltando como a preservação da memória (individual e coletiva) é algo fundamental.

Mas talvez o que mais impressione em “O Agente Secreto” seja a maturidade de Kleber Mendonça Filho como diretor. Menos reverente ao cinema americano e mais atento às dores e delírios do Brasil, ele parece ter alcançado o equilíbrio entre o afeto e o enfrentamento.

A obra é uma meditação sobre o país que fomos e continuamos sendo. A corrupção que ele retrata na ditadura ainda é a mesma que presenciamos hoje. O medo de ser vigiado, o silêncio imposto, a impunidade institucionalizada: nada parece distante.

O cineasta é hoje um dos maiores expoentes do cinema nacional, e faz questão de usar sua influência para escancarar a desigualdade regional se utilizando de inúmeras referências e reafirmações de suas convicções.

No fim, “O Agente Secreto” é menos sobre espionagem e mais sobre memória. É sobre os fantasmas que o Brasil insiste em esconder e que, ainda assim, encontram meios de reaparecer. Kleber Mendonça Filho faz dessa obra um espelho do Brasil: rachado, mas que tem uma beleza possível.

Uma obra que não tem pressa para desenvolver seus mistérios, que nos envolve na psique do protagonista e na atmosfera daquele mundo entre realidade e perigo, enquanto se revela uma verdadeira carta de amor ao Recife e ao cinema brasileiro, tentando sobreviver às mentiras que nos contam e às verdades que fingimos esquecer.

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