Eu ainda tenho um nome – Daniel dos Santos e o luto que o tempo não apaga
No Brasil, onde mais de 34 mil pessoas morrem em acidentes de trânsito todos os anos, a individualidade de cada vítima se perde entre estatísticas, relatórios e reportagens que falam de números, não de histórias. Daniel dos Santos, mecânico de 25 anos e morador de Araguaína-TO, foi uma dessas vítimas que perdeu sua vida em maio de 2023.
O caso da morte de Daniel foi reacendido durante a apuração do Jornal Primeira Página sobre o acidente fatal de Maria Alice Guimarães, 25 anos, ocorrido em Araguaína no dia 22 de março deste ano. Um elo inesperado uniu esses dois casos: um dos passageiros do veículo que colidiu com Maria Alice foi o responsável pela morte de Daniel, quase dois anos antes.
Trata-se de Gabriel Yuzo Silva Yamashita, hoje com 21 anos. Naquele 23 de maio, Yuzo dirigia pelas ruas do Setor Oeste de Araguaína quando atingiu Daniel, que morreu a caminho do hospital. Detalhes sobre como o acidente ocorreu constam mais abaixo nesta reportagem.
Agora, a história de Daniel, o “Dandan”, é contada por quem teve o privilégio de conhecê-lo de perto. O Jornal Primeira Página narra, nesta reportagem, um dia que ainda vive na memória de familiares e amigos desse rapaz trabalhador, filho exemplar, que sonhava em ser motorista de caminhão.
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Os dias de luto para um pai, uma mãe, uma irmã e uma sobrinha
O Jornal Primeira Página conversou durante a última semana com Luana Arruda dos Santos, 30 anos, irmã de Daniel, e com amigos próximos do jovem para contar essa história. Os pais, ainda profundamente abalados até hoje, quase dois anos após a morte do filho, preferiram não conceder entrevista.

Destaca-se que a família de Daniel nunca recebeu um telefonema, mensagem ou qualquer contato da família de Gabriel Yuzo após o acidente fatal. Todas as despesas funerárias, inclusive, foram arcadas com dificuldades pela própria família, que precisou pegar dinheiro emprestado para cobrir os custos do velório e sepultamento, conforme relatou Luana.
Os impactos da perda de Daniel ainda são devastadores para a família, informou a irmã. O pai, Isaias José da Silva, que é porteiro de uma empresa, teve o emocional seriamente comprometido: enfrentou episódios de ideação suicida após a morte do filho. Hoje, aos 71 anos, luta contra as consequências psicológicas da perda e enfrenta ainda outras grandes batalhas muito particulares.
A mãe, Maria Gorethe Arruda dos Santos, empregada doméstica, está próxima de completar 60 anos. Luana contou que o refúgio da mãe após a morte de Daniel foi a fé, participando ativamente de grupos católicos da igreja que frequenta. Entretanto, as sequelas emocionais se manifestaram também no corpo: ela perdeu peso, desenvolveu doenças psicológicas, como depressão, e hoje faz tratamento com um reumatologista.
Sem boas condições financeiras, a família de Daniel é humilde e são moradores do bairro Tiúba – setor periférico de Araguaína-TO, um bairro não asfaltado até os dias de hoje.

“Toma, mãe, o vale deste mês”
Daniel trabalhava com carteira assinada em uma empresa de transportes rodoviários como mecânico de caminhões. Era uma forma de ficar perto do sonho que tinha: ser motorista. O jovem fez cursos no SENAI para se qualificar profissionalmente na área e estava focado no objetivo.
Na época de escola, era um bom aluno. Seu boletim escolar, anexado pelo Ministério Público do Tocantins no processo que investiga o acidente que tirou sua vida, constam notas altas em disciplinas como Matemática, Física, Língua Portuguesa e Química. Daniel concluíu o Ensino Médio na Escola Estadual Jardim Paulista, no ano de 2015.
O rapaz morava com os pais, em uma casa simples, e ajudava ativamente nas despesas desde que começou a trabalhar. Todo mês, ao receber o vale-alimentação da empresa que estava registrado, entregava o cartão para a mãe fazer as compras. “Ele era um menino muito bom, um ótimo filho, amigo e irmão”, relembra Luana.
Cadê o tio Daniel?
Luana, irmã de Daniel, é mãe de duas crianças. Sua filha mais velha, Maria Liz, hoje com seis anos, tinha um vínculo muito especial com o tio. “Quando meu irmão faleceu, minha filha tinha apenas quatro anos. Eu moro na mesma rua que meus pais, e todo dia, na hora que ele costumava chegar, ela corria para a porta quando ouvia o barulho da moto dele”, conta Luana.
Explicar a ausência de Daniel à criança foi um desafio. “Ela perguntava onde ele estava e a gente respondia que ele tinha ido ficar com Deus. Ela então falava que queria ir lá ver o tio com Deus”, relembra a irmã.

Do Ceará para o Tocantins
Os pais de Luana e Daniel são naturais de Crato, no Ceará, e migraram para Araguaína na década de 1980, quando o Tocantins ainda era parte de Goiás. Foi aqui que os filhos nasceram. No começo, a família viveu em chácaras da região, trabalhando como caseiros.
Com muito esforço, juntaram dinheiro e compraram um lote no Setor Tiúba, onde vivem até hoje. Em 2012, conseguiram mudar-se para a sonhada casa própria, que ainda estava em construção. Na época, a residência não tinha piso, banheiro nem reboco, lembrou Luana, que tinha 13 anos. Daniel, apenas oito.
Os anos passaram, e Luana constituiu sua própria família e se mudou para uma casa na mesma rua dos pais, a poucos metros. Já Daniel, o caçula, permaneceu com os pais e se tornou o principal suporte da família.
Hoje, Luana trabalha como auxiliar de faturamento no setor financeiro de um hospital. No momento, está afastada devido à licença-maternidade pelo nascimento de sua filha mais nova, Laura Isa, que tem apenas quatro meses.

O sonho de ser caminhoneiro
Se havia algo que Daniel amava, era caminhões. Ele entendia muito sobre a mecânica de veículos pesados e trabalhava na área, mas seu verdadeiro sonho era ser motorista. Luana contou ao Jornal Primeira Página que, nos meses que antecederam o acidente, Daniel estava muito entusiasmado, pois a empresa onde trabalhava planejava ajudá-lo a tirar a habilitação para dirigir caminhões.
Nas redes sociais, ele compartilhava diariamente fotos de caminhões e de viagens – era o desejo de viver na estrada. Em abril de 2023, um mês antes de sua morte, ele pegou 30 dias de férias e embarcou em uma viagem ao lado de seu grande amigo João Paulo Damasceno, que é caminhoneiro.
Segundo Luana, essa foi a realização de um sonho, ainda que breve. “Para nós da família, essa viagem foi a impressão de que ele conseguiu viver o sonho de ser caminhoneiro, mesmo que por um mês”, destacou.
Daniel retornou das férias no dia 28 de abril. Pouco mais de uma semana depois, em 6 de maio, sua vida foi interrompida no trágico acidente. O amigo, João Paulo Damasceno, 37 anos, contou como foi a viagem ao Jornal Primeira Página.
A grande e última viagem
João Paulo Damasceno, o JP, é caminhoneiro de profissão e um dos grandes amigos que Daniel colecionou em sua curta jornada. Em entrevista ao Jornal Primeira Página, ele relembrou como foi a viagem que fizeram juntos durante as férias de Daniel.
Os amigos percorreram cerca de 6 mil quilômetros, passando por cidades do Pará, como Conceição do Araguaia, Santana do Araguaia e Redenção. Depois, seguiram para Mato Grosso, onde passaram por Primavera do Leste, e, em seguida, foram até o Rio Grande do Norte.
“Meu amigo era fã de caminhão e da profissão. Todo mundo que conhecia ele adorava sua companhia. Como era mecânico, ele era muito querido pelos motoristas da empresa. Depois que ele morreu, a notícia se espalhou por muitos estados, e a comoção foi enorme. Nos grupos de WhatsApp, muita gente sentiu a perda”, contou João Paulo.

João Paulo e um grupo de amigos decidiram homenageá-lo de uma maneira especial. Eles mandaram confeccionar camisetas personalizadas com a imagem do amigo, entregando-as para sua família como um gesto de carinho e lembrança.
“Ele faz uma falta terrível. Deixou saudades em todos nós. Lá em cima, tenho certeza de que está vendo o quanto era querido”, finalizou João Paulo.
Nosso querido “Dandan”
Amigos não faltavam na vida de Daniel, tanto entre os colegas de trabalho na empresa quanto entre as pessoas que ele conheceu e cativou em Araguaína. Uma delas é Jaqueline Gomes da Cunha, de 33 anos, que falou com o Jornal Primeira Página.
Jaqueline estava com Daniel na noite em que ele morreu. “Dandan” era o apelido carinhoso que ganhou entre o grupo de amigos. Ela contou que conheceu Daniel em 2018, quando trabalhava em um restaurante próximo à empresa que ele trabalhava.
“Ele e os amigos almoçavam lá quase todos os dias. Aos poucos, nos tornamos amigos, e nossa amizade foi muito forte por dois anos. Ele era o xodó do nosso grupo, nosso Dandan.”
Sobre o dia do acidente, Jaqueline contou que Daniel tinha saído do trabalho tarde naquele dia, e passou para visitar ela e outros amigos antes de ir para casa. “A gente até pediu para ele ficar mais, porém ele queria ir para casa e ficar com os pais, ele era assim, muito apegado à família”.
A descoberta do trágico acidente ocorreu no dia seguinte, logo pela manhã. “Quando foi no outro dia planejamos fazer um almoço e chamar nossa turma de amigos, comer um frango caipira na minha casa e chamar o Dandan junto. Foi quando uma amiga viu na internet que ele tinha morrido.”

A dor da perda e o clamor por justiça
Vera Lúcia Oliveira, 51 anos é outra grande amiga de Daniel. Ela e Jaqueline Gomes conversaram juntas com o Jornal Primeira Página para falar sobre a história do “Dandan”.
Com Vera Lúcia, a amizade com “Dandan” começou quando ela vendia feijoada e Daniel passou a levar colegas do trabalho para almoçar lá. “A gente não se conhecia, mas ele foi essencial para mim no início. Me ajudou sem nem me conhecer. Levou os amigos dele lá para comer minha feijoada, eu estava desempregada na época”.
Muito emocionadas, as amigas falaram sobre o sentimento de injustiça. “Ele não morreu, foi assassinado! Não foi com uma arma de fogo, mas com um veículo conduzido por um irresponsável”, disse Vera.
Jaqueline lamentou a falta de repercussão do caso. “Parecia que o Daniel estava errado quando saíram notícias sobre o acidente. Falavam até que a moto dele estava sem farol, logo ele que era mecânico. Uma pessoa responsável como ele não faria isso nunca”.
As amigas contaram que só três meses depois da morte do Daniel souberam quem era o motorista que causou o acidente fatal que vitimou o amigo. Contudo, só agora, em 2025, conseguiram ver uma foto dele. Para elas, duas palavras resumem os últimos dois anos: dor e saudade.
“O Daniel não volta mais, mas queremos justiça. Muita gente sente a dor da perda da amizade do Dandan. O que queremos é que não se façam mais vítimas. O Daniel não vai voltar! O que ficou dele está em nosso coração e ninguem vai tirar. Que essa pessoa que dirigia o outro veículo, que seja punida! Não desejo nada de ruim pra ele, desejo que ele saiba a dor que trouxe para a vida de muita gente”, finalizou Vera Lúcia.
O acidente que tirou a vida de Daniel
Daniel dos Santos trabalhou até mais tarde naquele 6 de maio de 2023. Ao sair do trabalho, visitou rapidamente alguns amigos. Sua mãe, Maria Gorethe, chegou a ligar para perguntar por que ele ainda não tinha chegado em casa. Daniel respondeu que não demoraria, mas, no caminho, sofreu o acidente.
A colisão entre os dois veículos ocorreu por volta das 23 horas. O outro condutor envolvido era Gabriel Yuzo Silva Yamashita (que estava como passageiro na BMW que colidiu fatalmente com Maria Alice Guimarães, no dia 22 de março deste ano). Ele é de Medicina de uma faculdade particular de Araguaína.
Na noite do acidente, Gabriel, então com 19 anos, dirigia alcoolizado e em alta velocidade, conforme a Polícia Civil de Araguaína. Ele havia saído de um bar frequentado por estudantes de Medicina, onde testemunhas confirmaram que ele consumiu bebidas alcoólicas.
No local do acidente, recusou-se a fazer o teste do bafômetro, mas a Polícia Militar registrou um Auto de Constatação de Sinais de Alteração da Capacidade Psicomotora. Segundo a perícia, Gabriel avançou uma placa de “PARE” e invadiu a via preferencial onde Daniel pilotava a moto.
Ele foi preso em flagrante, mas pagou fiança de R$ 39.600 e foi solto em menos de 24 horas.
Em dezembro de 2024, os pais de Daniel dos Santos ingressaram com uma ação judicial contra Gabriel, por meio da Defensoria Pública, solicitando que ele pague R$ 6.045,59 pelo valor da moto destruída e R$ 868.606,99 pela morte de Daniel.
O processo judicial segue em andamento e terá sua audiência de instrução e julgamento marcada para 24 de novembro de 2025, mais de dois anos após o ocorrido. O Ministério Público do Tocantins pede sua condenação por homicídio duplamente qualificado.
