Ecos da Liturgia — A imagem quebrada que uniu um povo
Morgana Gurgel - Jornalista e fotógrafa de 21 anos, católica praticante e observadora atenta do mundo religioso. Apaixonada pela escrita, encontrou na coluna Ecos da Liturgia um espaço para refletir sobre fé e sociedade. O objetivo é mostrar como a liturgia e os discursos da Igreja ressoam no cotidiano e nos debates atuais.
Outubro, mês missionário e mariano, convida-nos a voltar o olhar para Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Sua história, simples e silenciosa, revela uma teologia profunda. Deus se manifesta no pequeno, no esquecido, no que o mundo rejeita. Foi das águas do rio Paraíba, nas mãos de três pescadores pobres, que emergiu uma imagem negra e quebrada, corpo e cabeça separados, destinada a se tornar símbolo de fé, unidade e esperança para um povo inteiro.
A narrativa da aparição é, por si só, uma liturgia. Um rito que nasce da vida comum. A pesca frustrada, o esforço repetido, o gesto humilde de lançar novamente as redes… até que algo inesperado acontece. Naquele encontro com a pequena imagem, a graça se encarna no cotidiano. O que era trabalho se torna oração. O que era desânimo se converte em milagre. A fé de um povo começa ali, no encontro entre a pobreza e a presença de Deus.
Maria, a mulher das margens
Nossa Senhora Aparecida é a Maria das periferias, mulher do povo, mulher das águas. Sua imagem, marcada pelo tempo e pela dor, recorda que a fé cristã não é exclusividade dos templos de mármore, mas brota também das margens, onde a vida é dura e a esperança insiste em florescer. Ela é mãe que acolhe todos, mas tem predileção pelos que mais sofrem: os que, como ela, conhecem o peso do silêncio, da exclusão e da espera.
E há um detalhe que a história não permite esquecer: em 1978, a imagem foi novamente quebrada, dessa vez pela violência de um homem que, em um ato de fúria, a lançou ao chão. A cabeça foi separada do corpo novamente, e muitos acreditaram que o símbolo havia sido destruído. Mas, como no primeiro milagre das águas, ela foi restaurada, cuidadosamente recomposta, e voltou ao altar.
Esse gesto (humano e divino) é também um anúncio: nenhuma violência é capaz de apagar a fé de um povo. A imagem ferida e restaurada se torna ainda mais eloquente: ela representa um Brasil que resiste, se refaz e permanece de pé.
Celebrar Nossa Senhora Aparecida é participar de uma liturgia que vai além do altar. É fazer memória do amor de Deus que se encarna na história do povo brasileiro. Cada romaria, cada vela acesa, cada súplica diante da pequena imagem expressa a comunhão entre fé e vida, entre céu e chão.
É um gesto profundamente litúrgico reconhecer que o sagrado habita o ordinário — que a fé nasce das águas, dos gestos simples, das mãos que rezam e trabalham.
O mês de outubro é também o mês missionário. E Maria é a primeira missionária. Ao dizer “sim” ao anúncio do anjo, ela se torna portadora da Boa-Nova. Ao visitar Isabel, leva a presença de Cristo aos outros; ao estar aos pés da cruz, permanece fiel até o fim.
Em Aparecida, essa missão se renova: somos chamados a ser Igreja em saída, que leva consolo, escuta e solidariedade onde houver sofrimento e abandono.
Em meio às águas turbulentas do nosso tempo (marcadas por desigualdade, indiferença e desesperança) a pequena imagem de Aparecida continua a emergir, silenciosa, a nos lembrar: Deus ainda age nas margens.
E Maria, com seu manto azul, nos envolve e repete o mesmo convite de sempre: “Fazei tudo o que Ele vos disser.” (Jo 2,5)