Áreas nobres expõem o contraste entre o sonho da capital planejada e o esquecimento

Desvalorização imobiliária, mato alto, vandalismo e escalada da violência em quadras centrais de Palmas revelam o avesso da lógica de uma capital moderna.

Planejamento e realidade: o avesso das quadras centrais de Palmas.

Concebida sob um modelo urbanístico pós-modernista, Palmas nasceu com a promessa de ser uma capital moderna, de expansão controlada e harmônica. O projeto original previa uma ocupação gradual, organizada em grandes blocos e setores bem definidos. Na prática, no entanto, a cidade, organismo vivo e em constante transformação, não seguiu o roteiro do papel.

Ao longo dos últimos 30 anos, a dinâmica econômica, as demandas de mobilidade e o acesso a serviços como saúde, abastecimento e educação moldaram uma ocupação irregular, criando contrastes urbanos na capital mais jovem do Brasil.
De um lado, o frenesi diário da Avenida JK, pulsando próxima ao Palácio Araguaia; de outro, a sensação de abandono que se instala nas quadras vizinhas sobretudo quando a noite cai.

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O desenho original de Palmas separava áreas residenciais de espaços comerciais. A intenção era favorecer a qualidade de vida, mas a ocupação descontrolada inverteu as funções previstas. Quadras como a Arse 21 (204 Sul), pensada para moradia, hoje abriga um corredor de clínicas médicas, restaurantes e escritórios. Já a Arse 14 (110 Sul), também projetada como área residencial, se transformou em polo de grandes empreendimentos comerciais, atraindo lojas de departamentos, home centers e atacarejos.

Essa ruptura entre o planejado e o executado trouxe novos desafios. O vazio deixado por espaços subutilizados abriu margem para o vandalismo e acentuou problemas de manutenção urbana. Em muitas quadras centrais, a paisagem atual é marcada por mato alto, falta de iluminação pública, prédios abandonados, obras inacabadas e acúmulo de lixo.

Quem vive ou trabalha nesses locais sente na pele os efeitos desse problema. O comerciante Carlos Rosa, que mantém seu negócio há três anos na quadra ACNO 01 (103 Norte), a menos de 500 metros da Avenida JK, relata dificuldades cotidianas.
“O serviço público vem, abre buraco na rua, deixa a obra inacabada, não cuida dos canteiros, interrompe a energia sem aviso. Nós nos sentimos esquecidos”, desabafa.

Diante desse cenário, a Prefeitura de Palmas afirma estar elaborando um projeto de revitalização para as quadras centrais. Segundo a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano, a proposta inclui melhorias nas calçadas, adequações de acessibilidade, ampliação de estacionamentos e estímulo à construção de novos edifícios habitacionais.

O projeto-piloto deve ser lançado no primeiro semestre do próximo ano e prevê ainda o aumento do potencial construtivo da região, com foco em pequenos apartamentos. A gestão argumenta que a iniciativa busca modernizar a área, fortalecer o comércio local e, ao mesmo tempo, promover mais segurança e mobilidade urbana.

Entre o sonho da capital planejada e a realidade construída, Palmas segue desafiando sua própria lógica de cidade modelo, um contraste visível no coração de suas quadras centrais.

Ciclo do abandono: quadras centrais de Palmas enfrentam colapso econômico

O abandono das quadras centrais de Palmas não se traduz apenas em problemas de urbanismo e zeladoria. O impacto direto na economia local é visível e cria um ciclo vicioso: o baixo movimento afasta comerciantes e a ausência de comerciantes reduz ainda mais o fluxo de pessoas. Essa retroalimentação provoca colapso econômico, desvalorização imobiliária e queda acentuada nos índices de atividade comercial.

O resultado é um contraste urbano que desorganiza a lógica da capital planejada. Onde faltam negócios, sobram imóveis fechados e áreas ociosas. Onde os empreendimentos resistem, a concentração excessiva de atividades em pontos isolados gera superlotação, tumulto no tráfego e déficit de vagas de estacionamento. A cidade, afinal, só acontece onde há pessoas e os vazios urbanos acabam distorcendo a dinâmica econômica.

Um exemplo é a região do Centro Popular de Compras (camelódromo). Ali, a sobreposição de lojas, concessionárias de veículos seminovos e o fluxo intenso de pedestres e automóveis praticamente inviabilizam o próprio comércio da microrregião, que já opera em espaço reduzido e sem possibilidade de expansão.

Para o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), Silvan Portilho, as quadras ACNO 01 (103 Norte) e  103 Sul são hoje os pontos mais críticos. A entidade já apresentou estudos com propostas de revitalização, mas ele destaca que o gargalo mais urgente é a falta de estacionamento.

“O modelo urbanístico de Palmas não favorece o pedestre. As pessoas dependem do carro e precisam de locais adequados para estacionar. Uma revitalização bem planejada pode ampliar a mobilidade e devolver vitalidade ao comércio”, afirma.

O setor imobiliário também sente os reflexos. Entre as quadras 103 e 104, localizadas atrás da Avenida JK, as diferenças já são significativas. Enquanto a 104 ainda mantêm relativa aceitação entre comerciantes, apesar de problemas estruturais e de mobilidade, a 103 sofre maior rejeição. Imóveis permanecem fechados por mais tempo e há menos procura de investidores.

Desvalorização e longos períodos de vacância, reflexo direto do abandono. Foto: Jornal Primeira Página

Segundo o corretor de imóveis Aderaldo Jorge, a diferença de interesse entre as duas áreas já chega a 30%.

“As quadras 103 têm boa localização e imóveis de qualidade, mas não despertam a mesma confiança dos empreendedores. Isso contribui para o esvaziamento e para a queda nos preços de locação e venda”, explica.

Ele destaca ainda que o problema do estacionamento não é apenas de quantidade, mas de gestão. “A rotatividade é essencial. O uso prolongado das mesmas vagas limita a circulação e prejudica todo o entorno”, defende.

Apesar do quadro atual, Aderaldo vê sinais de mudança. “Já há investidores atentos às oportunidades e novos empreendimentos surgindo nas 103. Acredito que estamos diante de uma fase de transição”, avalia.

A percepção é compartilhada por comerciantes que relatam queda nas vendas e perda de clientes, mas ainda acreditam no potencial de recuperação das quadras. Para eles, a revitalização urbana pode ser o caminho para quebrar o ciclo do abandono e transformar novamente a região em polo de atração econômica.

Vazios urbanos alimentam a insegurança

Se a desvalorização imobiliária e o esvaziamento comercial já são problemas graves nas quadras centrais de Palmas, seus reflexos na segurança pública tornam o cenário ainda mais preocupante. A combinação de falhas na manutenção urbana, ausência de serviços básicos e baixa movimentação de pessoas cria o ambiente ideal para o avanço da criminalidade.

Prédios abandonados, iluminação precária, mato alto e ruas pouco frequentadas tornam-se terreno fértil para o vandalismo e favorecem a prática de delitos. Nesse vácuo urbano, a sensação de abandono cresce junto com os índices de violência, comprometendo não apenas a economia, mas também a qualidade de vida da população.

A insegurança em regiões centrais de Palmas, especialmente nas quadras 103 Sul, 103 Norte e 104 Sul, tem sido motivo de preocupação para moradores e comerciantes.

O Coronel da Polícia Militar do Tocantins, João Leyde de Souza Nascimento, especialista em segurança pública e mestre pela Universidade Federal de Santa Catarina avalia que a ausência de rotina nesses espaços está diretamente ligada ao aumento da insegurança.

“A cidade precisa oferecer estrutura e planejamento tanto para as áreas ocupadas quanto para as desocupadas, de modo que haja circulação e movimento. A baixa movimentação contribui para a insegurança”, afirma.

Segundo o oficial, estudos internacionais apontam que regiões com pouco fluxo de pessoas registram crescimento expressivo de ocorrências criminais. “Essas áreas acabam se tornando propícias ao vandalismo, à ocupação irregular e a crimes como roubos e furtos. É um fenômeno observado em várias cidades e que se repete em Palmas”, explica.

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