SINOPSE — “Malês” O furor da história contido pela estética televisiva

Há filmes que nascem do coração e que tem uma importância simbólica inegável, “Malês” é um deles. O projeto, sonhado por Antônio Pitanga há mais de três décadas, é antes de tudo um gesto político e afetivo. O desejo de revisitar nas telas o Levante dos Malês, ocorrido em 1835, em Salvador, reinscreve na memória coletiva um dos episódios mais marcantes de resistência negra do país.

Pitanga, lenda viva do cinema brasileiro, não apenas dirige, mas se coloca em cena, e convoca seus filhos, Camila e Rocco, para compartilhar esse tributo à ancestralidade. É como se a linhagem dos Pitanga encarnasse, no corpo e na voz, a própria genealogia negra do Brasil.

Com essa obra, Pitanga realiza um testamento audiovisual, há, em cada quadro, o amor de um homem que entende o cinema como instrumento de luta. No entanto, ao confundir reverência com rigidez, o cineasta acaba entregando uma obra que, embora necessária, carece de vida e de vigor cinematográfico. O resultado é um longa que celebra a história negra com devoção, mas tropeça em suas próprias amarras formais, preso a um estilo excessivamente televisivo, que esvazia parte da potência que a narrativa merecia.

O filme se constrói com muitas vozes, muitos corpos e muitos olhares sobre a revolta. Pitanga aposta em uma estrutura de múltiplos protagonistas, uma escolha que inicialmente é ousada, mas que acaba se tornando um fardo. A montagem fragmentada, que salta de personagens a tempos e espaços distintos, perde o fio da emoção e a coerência do discurso, revelando uma produção de recursos limitados, avessa ao teor  coletivo que busca e que falha em dar ritmo aos acontecimentos com cortes abruptos que quebram a continuidade. A narrativa parece querer abraçar tudo e todos, mas termina abraçando o ar.

Do ponto de vista técnico, a fotografia digital é ao mesmo tempo clara e cruel. Nítida demais para evocar o século XIX, ela transforma o drama histórico em algo visualmente asséptico, aproximando-o da estética das novelas de época globais. O brilho da imagem contrasta com a densidade da história, criando um paradoxo incômodo: o épico dos oprimidos contado com a leveza artificial do HD. A Bahia revolucionária dos Malês, que deveria pulsar com suor, pólvora e fervor religioso, parece ser filmada sob luz de estúdio.

A direção de arte tenta compensar com figurinos e objetos de época, mas a rigidez da mise en scène impede que o espaço ganhe vida. Há uma estagnação dos movimentos e certa dificuldade em dispor, em simultâneo, tantos corpos no enquadramento. As cenas em grupo, que deveriam exalar energia coletiva, são estáticas com personagens perfilados, discursos empostados, gestos coreografados aproximando-se de uma fantasia de revolta popular, em vez de uma recriação adequada em termos estéticos. Pitanga filma a revolta como se fosse uma solenidade. E o que era para ser fúria vira cerimônia.

O roteiro, por sua vez, tenta dar conta da dimensão política e espiritual do levante, mas se perde entre o didatismo e a reverência. Em muitos momentos, os personagens parecem declamar lições de História em vez de viver a História. Há um desejo evidente de ensinar, e ele é nobre, mas os diálogos artificiais e o estilo empostado de falas privilegiam o discurso em detrimento da emoção. As subtramas são frouxas, as cenas têm pouca criatividade visual e a linguagem não faz jus à importância dessa representação que coloca em questão a natureza estrutural do racismo.

Há problemas evidentes de som e sincronia, com dublagens que destoam do realismo proposto. Em contrapartida, o esforço em preservar o idioma árabe e as expressões islâmicas é um acerto, um gesto de respeito à autenticidade dos Malês e à sua religiosidade como força política. Ainda assim, a falta de uniformidade nos sotaques e as atuações refletem essa dificuldade de tom, apresentando plásticos olhares inquisidores e gestos de conquista, dignos dos heróis corajosos em epopeias hollywoodianas (e não no bom sentido).

Quando a batalha finalmente eclode, espera-se catarse, mas o que vem é confusão. A câmera tremida e o corte rápido buscam urgência, mas resultam em desorientação espacial. A luz escura cria um emaranhado de borrões pouco expressivos que denotam muito mais falta de habilidade para filmar batalhas campais do que a intencionalidade de retratos alegóricos dos personagens. Falta a geografia da luta, não se sabe quem está onde, quem atira em quem, o que está em jogo. O momento que deveria ser o clímax da revolta soa atropelado, quase burocrático.

“Malês” se ampara apenas naquilo que representa. Existe grandeza em ver um homem de 85 anos ainda disposto a desafiar a inércia do cinema brasileiro, a recontar sua história com paixão e a celebrar a resistência negra. O filme tem a força do gesto, do manifesto, do amor incondicional à memória. Pitanga não filma apenas um levante, ele filma sua própria permanência. Mas, a nobreza do gesto não basta para sustentar a obra. O resultado é um drama de intenções grandiosas que, no entanto, se perde entre a reverência histórica e a indecisão estética.

No entanto, seria injusto encerrar sem a constatação que se impõe: “Malês” é um filme irregular, mas necessário. Vive do que simboliza, mais do que realiza. Seu valor está na intenção, na herança, no chamado à lembrança e não na invenção cinematográfica. O artista veterano passa o bastão aos filhos, entregando a eles o papel de dar continuidade à luta por representatividade e memória. Essa camada familiar, que mistura luta e herança, confere ao projeto um valor emocional que nenhuma falha técnica consegue anular. “Malês” é, nesse sentido, um testamento afetivo à resistência negra no Brasil e, por isso, é impossível não sentir respeito e admiração.

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