Luca Guadagnino construiu sua reputação como um dos cineastas mais sensíveis e visuais do cinema contemporâneo, transformando pulsações, desejos, culpas e delírios em belíssimas imagens. Depois de se tornar mundialmente conhecido com “Me Chame Pelo Seu Nome” , que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2018, o diretor italiano percorreu a bruxaria expressionista de “Suspiria”, o amor canibal de “Bones and All” e a febre sensual e atlética de “Rivais”.
Agora, em “Depois da Caçada”, ele troca o suor pela moral e o resultado é um thriller psicológico que se comporta como um espelho do nosso tempo, provocador, inquieto e um tanto cínico, propondo um mergulho na política do cancelamento e nos embates éticos do meio acadêmico.
Desde o início, o filme se apresenta como um exercício de provocação moral. Guadagnino parece interessado em testar os limites da empatia do espectador, questionando nossos impulsos por julgamento e a necessidade contemporânea de definir vilões e vítimas imediatas.
É um ponto de partida promissor: academia, moralidade e poder colidindo em plena era de prestação de contas pública, mas me parece um filme lançado tarde demais para a conversa que deseja travar. O debate é ótimo, mas sua execução, nem tanto, o que pode frustrar alguns expectadores, já que esse não é o Luca Guadagnino alinhado ao que estamos acostumados.
O fato é que Guadagnino nunca desaprende a filmar. Nessa obra, há algo mais cerebral, mais distanciado, quase clínico mas é inegável o domínio do diretor sobre a gramática cinematográfica. A câmera com seus movimentos e zoons abruptos, tentam insuflar urgência à narrativa, os enquadramentos são elegantemente calculados, as cores transitam do branco imaculado aos tons sombrios à medida que a protagonista se dobra sobre si mesma e sobre suas decisões duvidosas.
A trilha sonora surpreendentemente “abrasileirada” em alguns trechos injeta tensão e ritmo. No entanto, a sensualidade que sempre marcou sua filmografia dá lugar a um rigor acadêmico, como se o diretor estivesse mais interessado em provocar discussões do que sensações.
A trama acompanha Alma, vivida por uma Julia Roberts, professora de filosofia em Yale, respeitadíssima e prestes a conquistar a tão cobiçada titularidade, ela se vê em meio a uma crise ética quando sua aluna favorita, Maggie (Ayo Edebiri), acusa o professor Hank (Andrew Garfield), melhor amigo de Alma e colega de departamento, de agressão sexual após um jantar na casa da própria protagonista. Não demora para que jornais estudantis, professores e doadores da instituição se posicionem, transformando o caso em arena pública. No centro, Alma precisa equilibrar sua reputação, sua consciência e um segredo de juventude que insiste em empurrá-la para um redemoinho emocional.
É nesse ponto que o filme tenta tensionar o público, como se nos colocasse numa sala de interrogatório. Até onde vai a lealdade? O quanto o desejo distorce a percepção do que é justo? E, na era da hiperexposição, quem define o que é verdade antes mesmo que ela exista? Essas questões são férteis, mas o filme, por vezes, parece mais interessado em provocar do que em aprofundar.
O roteiro, embora repleto de ideias relevantes, tropeça em sua própria verborragia. Há diálogos inteiros que soam como transcrições de seminários, cheios de palavras da moda, cacoetes teóricos e um verniz pseudo-filosófico que cansa. O filme coloca-se em um terreno de falsa neutralidade, enquanto pretende expor o moralismo contemporâneo mas acaba reafirmando a centralidade do olhar branco, masculino e europeu.
O resultado é um filme apático, estéril e, paradoxalmente, sem tesão, algo impensável na filmografia de Guadagnino. A aluna pode estar dizendo a verdade ou pode estar mentindo. E também pode estar manipulando. O filme deixa todas as portas abertas, mas não se compromete com nenhuma. Talvez esse seja o maior problema, pois ao tentar evitar posições, “Depois da Caçada” escorrega para um relativismo que enfraquece os próprios assuntos que pretende explorar.
O filme apaga a voz de sua única personagem negra, lésbica e jovem, justamente aquela que carrega o peso da denúncia. A direção mira na cultura do cancelamento, mas atinge, no máximo, um retrato elegante da confusão moral contemporânea. Nada muito além do óbvio.
Mas se há um elemento em que o filme brilha sem reservas é no elenco. Roberts domina a cena com autoridade e fragilidade, compondo uma Alma que oscila entre vaidade, culpa e orgulho intelectual. Andrew Garfield entrega um Hank desconcertante: fumaça de cigarro, vaidade, charme gasto, a personificação do homem branco que a anos ocupa espaços acadêmicos.
Já Maggie, interpretada com precisão por Edebiri, torna-se o epicentro de um debate complexo onde seus privilégios anulam sua dor e é justamente essa ambiguidade que torna sua denúncia tão perturbadora. Michael Stuhlbarg aparece pouco, mas funciona como excelente contraponto emocional e Chloë Sevigny, mesmo com tempo reduzido em tela, colore o filme com seu magnetismo habitual.
No entanto, quando o epílogo pretensioso finalmente chega, com Guadagnino praticamente piscando para a plateia ao sugerir que a verdade é apenas uma questão de percepção, “Depois da Caçada” já perdeu seu rumo há muito tempo. É um filme sobre pessoas discutindo ideias, não sentindo-as.
Falta a coragem de se posicionar sem medo de desagradar. O diretor faz questão de deixar no ar as respostas para seus questionamentos. A eclosão não resulta em uma resposta enfática para a situação, podem ambos os lados estarem errados. Nada é tão preto no branco para o emaranhado de discussões que o filme propõe.
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