Por Rafael Miranda – Jornalista
Em 2020, eu ainda estava explorando outras oportunidades de trabalho na área de Comunicação e acabei parando no Governo do Estado. Antes disso, atuei por dois anos e meio em rádios comunitárias, depois passei mais nove meses no Estado e, em seguida, fui para uma área completamente diferente em uma empresa corporativa. Outra história. Só fui retornar para casa e para o jornalismo de verdade em novembro do ano passado. Desde então, muita coisa aconteceu.
Essa operação da Polícia Federal, que ocorreu na quarta-feira, 21 de agosto, e que aprofundou investigações contra um esquema de compra de cestas básicas durante a pandemia, emergiu muitas memórias por aqui. Conforme as investigações, foi apurado que as cestas chegaram a ser pagas, porém, não foram entregues pelas empresas envolvidas no escândalo.
Tudo isso soou como um pesado sino de catedral, nos lembrando da sina que é ser tocantinense e sangrar, gota a gota, em sucessivas operações policiais que se repetem. E as coincidências gostam de brincar conosco. Eu tenho uma história com essas cestas básicas.
Foi logo quando comecei a trabalhar em assessoria de comunicação no Estado (minha primeira experiência desse tipo). Nas primeiras semanas, fui escalado para acompanhar equipes do Ruraltins que entregavam cestas básicas para milhares de famílias que moram em assentamentos rurais no interior do Tocantins.
Esse trabalho começou em junho de 2020. Posso dizer que conheci o Tocantins profundo nessas viagens. Foi uma experiência muito marcante e significativa entrar em lugares que formam, de verdade, um retrato da sociedade brasileira. Lugares distantes, com estradas extremamente difíceis. Lugares onde o tempo corre em outro ritmo e as misérias são acentuadas demais.
Nessas viagens, fiz muito mais do que escrever aqueles releases fracos que éramos obrigados a fazer. Inclusive, era um tédio (para não dizer outra coisa) ter que encaixar o nome “Governador Mauro Carlesse” em tudo que eu escrevia. Foi também nessas viagens que aprendi a escrever um texto inteiro pelo celular, dentro do carro, balançando para todos os lados.
Percorrendo esses assentamentos e abrindo porteiras (muitas porteiras), me juntei aos companheiros do Ruraltins, servidores incríveis e muito dedicados, e entregamos, de porta em porta, alimentos que eram extremamente necessários naquela época. Eu também ajudava a carregar a caminhonete e coletar as assinaturas dos assentados que recebiam a cesta básica.
Foi durante essa jornada, inclusive, que tomei consciência de que existem milhares de lares em que os servidores do Ruraltins são as únicas presenças do aparato estatal que essa nossa gente miserável tem por perto. As equipes que trabalham diretamente com extensão rural conhecem as famílias pelo nome. É uma relação muito bonita, um exemplo de funcionalismo público.
Presenciei muitas cenas de gratidão e felicidade. Várias pessoas choravam quando nos viam chegar com as cestas básicas, nos agradeciam e nos desejavam uma boa viagem. Aqueles alimentos eram tudo para elas. Um respiro de alívio pela garantia de algo na mesa ao menos pelas próximas semanas. Lembro que algumas famílias ficavam preocupadas porque o vizinho não estava em casa e poderia não receber sua cesta, então corriam para avisar fulano ou ciclano que a turma do Ruraltins estava no assentamento.
Houve uma vez em que uma senhora, com medo da pandemia e da morte que se espalhava pelo país, nos pediu que fôssemos embora imediatamente. Tentamos deixar a cesta e mesmo assim ela recusou. Estava apavorada, sequer nos deixou chegar perto e passar pela porteira. A comunicação foi feita aos gritos, à distância. Infelizmente, tivemos que seguir viagem.
A felicidade das pessoas era tanta que insistiam muito para que ficássemos para o almoço ou, ao menos, tomássemos um copo d’água ou café. Mas tudo era recusado, pois havia a norma de não fazer contato direto, pelo receio de contaminar aquelas pessoas e espalhar o coronavírus em uma comunidade tão isolada.
Durante a pandemia, passei semanas fora de Palmas, rodando de caminhonete com a carroceria abarrotada de cestas básicas. Estive em Gurupi, Cariri, Crixás, Dueré, Peixe, Sucupira, Figueirópolis, Araguaçu e Sandolândia. Depois, foi a vez da região Sudeste: São Valério, Chapada da Natividade, Natividade e Almas.
A viagem mais marcante foi para o Quilombo Kalunga do Mimoso, a 120 km de Arraias. Um local ancestral, com 57 mil hectares de área e onde residem mais de 250 famílias. Não havia como voltar lá no outro dia, então seguimos noite adentro até finalizar a entrega em todos os lares. Quando o assentamento não tem uma agrovila, as casas podem ser muito distantes umas das outras.
Neste mesmo Quilombo, lembro de ter ido à casa de um senhor que deveria ter cerca de 80 anos. Andava com dificuldade, mas era forte como uma rocha. Morava sozinho, no meio de uma vastidão imensa. Não tinha celular, não tinha nada. Nem rádio pegava lá. Trabalhava o dia inteiro na roça, plantando sua comida. Brasileiro nato.
Quando a madrugada chegou, finalizamos o trabalho e todos estavam muito contentes. Ninguém do Quilombo ficou sem cesta básica. Ninguém! Encontramos um casal que gentilmente nos abrigou em barracas na varanda de sua casa. Eles fizeram um maravilhoso jantar e nós comemos (quebramos a regra, pois a fome era grande). Depois, tomamos um Velho Barreiro com limão e dormimos facilmente com a cruviana da noite.
Voltando aos dias de hoje, é estranho ser jornalista e acompanhar essas duas situações. Passei a quarta-feira escrevendo e apurando informações sobre essa nova operação envolvendo um esquema na compra dessas cestas básicas, enquanto lembrava dos momentos dessa viagem.
A revolta, obviamente, surge com muita força. É doloroso lembrar dos rostos de todas aquelas pessoas, sabendo que talvez apenas aquela cesta básica tenha sido entregue. Outras talvez nem tenham chegado, porque foram roubadas em um esquema que envolveu gestores públicos e empresários.
Se for possível classificar o grau de atrocidade em escândalos de desvio de verba pública na história brasileira, desviar dinheiro de cestas básicas durante uma pandemia que matou mais de 700 mil pessoas no país é um novo patamar atingido. Um feito que ficará marcado na história sombria do Tocantins, uma fotografia junto com tantas outras presas em nosso mural dos escândalos.
Penso também nas mentiras que, sem querer e sem saber, propaguei nos textos que assinei, escrevendo falas pomposas para servir de aspas ao governador da época, Mauro Carlesse – outro que foi afastado em pleno mandato. Enquanto se passava a imagem de uma “gestão atuante”, o esquema ocorria aos olhos de todos.
Mas o que eu sinto não é nada comparado ao que eles fizeram com essas pessoas tão carentes. Agora, só o bom jornalismo pode afogar essas mágoas e continuar tentando manter a luz acesa.