Cardiopatia congênita: falhas no diagnóstico pré-natal comprometem sobrevida de bebês

A comoção em volta do caso do bebê Davi Castilho, que ficou internado no Hospital Geral de Palmas (HGP) por 21 dias à espera de uma cirurgia para tratar sua cardiopatia congênita grave, reacendeu o debate sobre as formas de diagnosticar esses casos ainda no pré-natal, de modo que as famílias e a rede estadual de saúde possam se preparar para intervenções médicas.

Conforme apurado pelo Jornal Primeira Página, nem sempre os protocolos para o diagnóstico precoce de cardiopatia congênita ainda no período pré-natal são cumpridos. Entre os motivos estão a falta de profissionais capacitados no sistema público. A ausência de protocolos padronizados pode contribuir para o diagnóstico tardio e a necessidade de ações judiciais para garantir atendimento especializado.

Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, a cada mil nascidos vivos, entre um e dois apresentam cardiopatia congênita crítica. Desses, cerca de 30% recebem alta hospitalar sem diagnóstico, o que pode levar ao óbito precoce.

Especialista afirma que o diagnóstico pré-natal deve ser prioridade

Em entrevista ao Jornal Primeira Página, o médico cardiologista intervencionista, Dr. Bernardo Kremer, afirmou que exames realizados nos primeiros meses do pré-natal podem identificar precocemente uma cardiopatia congênita, aumentando as chances de sobrevivência do bebê e até diminuindo os gastos com tratamentos de urgência.

Para o médico, a ausência de diagnóstico ainda na gestação é um dos maiores entraves para o tratamento eficaz de bebês com cardiopatia congênita. “Há casos em que o pré-natal falha no diagnóstico, por despreparo técnico ou ausência de exames na rede. Aí o bebê nasce com uma cardiopatia complexa e o sistema de saúde é pego de surpresa”, alerta Kremer.

Segundo o médico, a recomendação é que todas as gestantes tenham acesso a exames como o ultrassom morfológico e o ecocardiograma fetal, realizados por profissionais capacitados. “Com um bom mapeamento intraútero, é possível planejar o nascimento, organizar o encaminhamento para unidades especializadas e até antecipar a necessidade de UTI aérea ou cirurgia. Isso reduz custos e salva vidas”, afirma o especialista.

De acordo com Kremer, alguns estados já adotam protocolos mais avançados de rastreio pré-natal. “Nos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, é raro uma cardiopatia grave nascer sem diagnóstico. Há preparo, há protocolo. Isso precisa ser fortalecido aqui também”, diz.

O cardiologista defende que o investimento inicial do Estado deveria priorizar a estruturação de diagnósticos precisos e a capacitação das equipes de saúde da família, obstetras e ultrassonografistas, de modo que o problema possa ser identificado antes mesmo do nascimento. “É mais barato, mais eficaz e mais humano”, conclui.

O caso do bebê Pedro Henrique

O Jornal Primeira Página entrevistou Maria Luiza Barbosa de Sá, mãe do bebê Pedro Henrique, que faleceu sete dias após o seu nascimento, em abril de 2018, na região norte do Tocantins. Mesmo com uma decisão judicial determinando que o Estado providenciasse sua transferência para uma unidade hospitalar especializada em até 48 horas, a medida não foi cumprida.

Pedro Henrique nasceu no dia 23 de abril de 2018, no Hospital Dom Orione, em Araguaína-TO. Sua mãe ficou internada por perda de líquido amniótico, o que levou a uma cesariana de emergência. Luiza conta que passou por toda a gestação de Pedro Henrique sem ser informada sobre a necessidade da ultrassonografia morfológica — exame que poderia ter identificado a cardiopatia congênita do bebê ainda no pré-natal. O problema só foi detectado após o nascimento, quando o recém-nascido apresentou graves sinais de comprometimento cardíaco e renal.

Após a morte de Pedro Henrique, Maria Luiza ingressou com ação na Justiça contra o Estado do Tocantins e contra a maternidade do Hospital Dom Orione. O processo ainda está em andamento. “Eles só vão entender o peso disso quando doer no bolso. Não dá pra deixar que isso aconteça com outras crianças”, afirmou em entrevista ao Jornal Primeira Página.

A regularização das cirurgias cardíacas no Tocantins

Desde 2018, quando ocorreu o caso do bebê Pedro Henrique, até o caso mais recente do bebê Davi, o sistema de saúde do Tocantins passou por várias mudanças. O Ministério Público do Tocantins (MPTO) ajuizou uma Ação Civil Pública, junto à Defensoria Pública Estadual (DPE), que exigiu a reorganização do Serviço de Cirurgia Pediátrica (CIPE) para que recém-nascidos com cardiopatia congênita possam ser tratados no Tocantins, sem a necessidade de transferência.

A liminar estabelece que esses procedimentos cirúrgicos deverão ser disponibilizados junto à rede pública estadual e, quando necessário, por meio de convênios com outras unidades da Federação ou hospitais da rede particular.

Foto: Nielcem Fernandes/Governo do Tocantins

Dados da Central Estadual de Regulação (CER) apontam que, entre 2015 e 2019, antes da implantação do serviço de tratamento cirúrgico de cardiopatias congênitas em crianças, 217 pacientes foram encaminhados via Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC/MS) para tratamento fora do estado. No período entre 2020 e 2023, com o início da consolidação do serviço local, apenas 21 pacientes foram para Tratamento Fora do Domicílio (TFD). Em 2024, apenas um caso foi encaminhado.

Profissionais que atuam na área da saúde e que foram consultados para esta reportagem informaram que existem poucas unidades médicas em todo o Brasil aptas a realizar cirurgias de peito aberto em bebês que sofrem de cardiopatia congênita. Atualmente, no Tocantins são realizadas apenas cirurgias de baixa complexidade, por meio de cateteres e menos invasivas.

Pacientes recorrem à Justiça para ter acesso ao tratamento

Tanto no caso do bebê Pedro Henrique, que veio a óbito em 2018, quanto no caso do bebê Davi, que neste ano conseguiu encaminhamento para hospital especializado em Minas Gerais, os pais tiveram que recorrer à Justiça em busca de seus direitos de acesso ao tratamento de urgência.

Em ambos os casos, o Governo do Tocantins não cumpriu com a determinação judicial no prazo estabelecido. A mãe do bebê Pedro Henrique, Maria Luiza, informou que o Estado não forneceu a UTI aérea dentro do prazo determinado para a transferência de seu filho. “A maternidade falou pra nós que o Estado falou que não tinha disponibilidade de UTI aérea pra levar ele”, desabafou.

O Jornal Primeira Página solicitou ao Tribunal de Justiça do Tocantins (TJ-TO) informações sobre o número de decisões judiciais obrigando o Governo do Tocantins a transferir recém-nascidos com quadro de cardiopatia congênita para tratamento fora do estado. Em resposta, o TJ informou que não dispõe desses dados sistematizados.

Lei prevê ecocardiograma fetal no pré-natal do SUS

Em 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou lei que obriga a rede pública de saúde a incluir no protocolo de assistência às gestantes a realização de ecocardiograma fetal no pré-natal. A Lei 14.598/23 orienta que, se constatada qualquer alteração que coloque em risco a gestação, o médico encaminhará a gestante para tratamento médico.

O ecocardiograma fetal avalia o coração do feto para identificar anomalias e arritmias. O exame permite avaliar a necessidade de intervenção ainda na barriga da mãe ou preparar o tratamento adequado para logo após o nascimento.

O Jornal Primeira Página questionou a Secretaria de Estado da Saúde (SES-TO) a respeito do funcionamento dos protocolos de exames específicos para detecção de doenças cardiológicas durante o pré-natal. Em nota a Pasta informou que “o Tocantins segue os protocolos do Ministério da Saúde (MS), contidos nas publicações ‘Atenção ao Pré-natal de Baixo Risco, caderno nº 32’ e no ‘Manual de Gestação de Alto Risco’, bem as Portarias e Notas Técnicas do órgão federal.”

Quanto aos exames para detecção de alterações no coração, a Secretaria de Estado de Saúde informou que existem pré-requisitos para realização do ecocardiograma fetal – ultrassom no coração do bebê para observar se o órgão está batendo normalmente ou se tem algum defeito ou malformação.

Segundo a Secretaria de Saúde “caso seja detectada alguma anomalia a partir do último exame mencionado, a gestante é encaminhada os centros especializados, conforme residência da paciente: ambulatório de Pré-Natal de Alto Risco do Hospital e Maternidade Dona Regina e Hospital e Maternidade Dom Orione para avaliação detalhada, acompanhamento com exames seriados, planejamento do parto e cuidados neonatais.”

Exames oferecidos atualmente no pré-natal do SUS

Como parte do acompanhamento pré-natal oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), gestantes têm direito a uma série de exames e vacinas que auxiliam na prevenção, diagnóstico e tratamento de possíveis complicações durante a gravidez.

A lista inclui testes laboratoriais como hemograma, glicemia, tipagem sanguínea, exames para infecções como sífilis, HIV e hepatites, além de ultrassonografias e vacinas como a antitetânica e contra a gripe.

Clique aqui para acessar a relação dos principais exames a serem realizados durante o pré-natal.